
REGISTROS HISTÓRICOS SOBRE RENDA DE BILROS NO ESPÍRITO SANTO
Um produto artesanal, como a renda de bilros, busca dar personalidade as diferenças culturais, mostrando sensibilidade e simbologias como valores agregados ao fazer artesanal.
A renda de bilros como atividade artesanal contrapõe a um produto “globalizado”, como as rendas industriais.
As rendas industriais tem o caráter impessoal pois são feitas em escala comercial por máquinas e em série. A renda de bilros, processo manual, é uma atividade artesanal que faz parte da identidade cultural de uma localidade como a Barra do Jucu no Espirito Santo.
A atividade das rendeiras da Barra do Jucu mostra uma forma de resistência diante da globalização. Os processos industriais da renda de bilros são responsáveis por uma padronização que atropela os costumes e modo de vida das comunidades tradicionais.
Aqui, buscamos em livros e publicações diversas, registrar e resgatar um pouco da história desta arte no Brasil e no Espírito Santo, forma de expressão da cultura popular tradicional que foi e é muito importante, principalmente para o empoderamento feminino mundo afora.
Confira:
1 – Dois anos no Brasil – 1798-1882

Biard, Auguste François, 1798-1882 – Dois anos no Brasil – Tradução de MARIO SETTE
COMPANHIA EDITORA NACIONAL, São Paulo – Rio de Janeiro – Recife – Bahia – Pará – Porto Alegre – 1945
“Todavia, sou obrigado a reconhecer que graças a uma dessas missivas obtivemos cavalos para nosso transporte e um negro para trazer os animais quando deles não mais precisássemos.
Era do nosso intento deixar as bagagens, em Vitória e ao atingirmos Santa Cruz mandar buscá-las cm canoas. E como não tivéssemos de partir logo fui dar uma volta pela cidade e seus arredores; foi, ali, que vi pela primeira vez um grupo de índios formando uma espécie de bairro. São bem numerosos êsses indígenas: a sua habitação sem que se possa chamar urna casa, não é, contudo, mais uma taba. :Eles já tinham certos hábitos civilizados. Entrei numa dessas habitações: em quase tôdas, mulheres faziam rendas de almofada e se via um periquito empoleirado num pau. Vi, também, alguns papagaios soltos”. P62
2 – Nossa Vida no Brasil: imigração norte-americana no Espírito Santo – 1867-1870

KEYES, Julia Louisa. Nossa Vida no Brasil: imigração norte-americana no Espírito Santo 1867-1870. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
“Não sabemos porque nos sentimos tão privilegiados, mas suponho que era porque tudo parecia tão diferente de uma cidade americana que não podíamos refrear nossa curiosidade. Se à época conhecêssemos os brasileiros melhor, teríamos conscientemente agradado ao invés de ofender, já que é sinal de boa educação entre eles examinar, em escrutínio, a aparência da redondeza e realizar cumprimentos agradáveis e lisonjeiros quando adequada às suas impressões, ou, de outro modo, se a opinião diferir.
Alguns foram atraídos ao verem mulheres fazerem renda, sobre almofadas, o que era feito com grande destreza, usando inúmeros alfinetes e bilros. Esses bordados e pontos eram realmente belos e as senhoras usavam-nos para adornar seus vestidos.
Suas fronhas são abertas em cada ponta, com um laço na borda da bainha. Garotinhas de todos os tamanhos têm conhecimento dessa arte e usam os alfinetes e bilros de forma tão ágil quanto suas mães, e as classes mais pobres fazem-na e a usam em grande quantidade.
Descobrimos o artesanato como uma característica do sexo frágil, e nos surpreendemos com a beleza de seu trabalho com a agulha, em casas completamente desprovidas de luxo e escassas em conforto”. p78-79
3 – Segunda viagem ao interior do Brasil: Espirito Santo – 1779 – 1853

Saint-Hilaire, Auguste de, 1779-1853 – Segunda viagem ao interior do Brasil: Espirito Santo – trad. de Carlos Madeira. – – São Paulo
Editor: Cia. Ed. Nacional – Ano: 1936 – 245p
“Na provinda do Espirito Santo as mulheres não se escondem, como acontece em Minas; recebem o estrangeiro, conversam com elle e concorrem em fazer-lhe as honras da casa.
A tecelagem de algodão é a que ellas são acostumadas; quase todas também fazem renda mais ou menos comum e teem o habito de trabalhar acocoradas sobre pequenos estrados, de um pé, mais ou menos, acima do soalho; é, sem dúvida, _ pelo exemplo dos índios, que não escondiam as mulheres, que as da provinda do Espirito Santo devem a liberdade que desfrutam e esse. resultado não é o único neste paiz, sobre os costumes dos portugueses em contacto com os numerosos indígenas. A língua _portuguesa tem sido alterada no Espirito Santo, por essas influencias continuas, e muitas palavras em uso, nesta região, não seriam, certamente, comprehendidas às margens do Téjo ou do Minho, nem mesmo no Rio Grande do Sul ou Minas Geraes”. Pg. 36
4 – Viagem de Pedro II ao Espírito Santo – 1916-2004


Viagem de Pedro II ao Espírito Santo / Rocha, Levy, 1916-2004 Arquivo Público do Estado do Espírito Santo – Secretaria da Cultura – 283p
“Os vinte e quatro remanescentes preferiram desprezar as culturas de milho, arroz, cana, e outros cereais; liquidar com as últimas cabeças de gado e com os dois lotes de burros que serviam para o intercâmbio das suas mercadorias; abandonar a dezena de casas que possuíam, algumas cobertas de telhas, por eles mesmos fabricadas, os paióis, monjolo, chiqueiro, e ficarem ali mesmo por Vitória, formando uma espécie de bairro da cidade. As suas mulheres já haviam aprendido a fazer rendas de bilros e eles, sempre peritos na confecção de redes e tarrafas de tucum, estariam melhor como pescadores”. Pg. 102
5 – Publicação FOLCLORE, Órgão da Comissão Espírito-Santense de Folclore – 1952
A publicação FOLCLORE, órgão da Comissão Espírito-santense de Folclore, com direção de Guilherme Santos Neves, publicada em julho-dezembro de 1952, traz um estudo da folclorista Isabel Serrano, um verdadeiro “achado” sobre a história desta arte, sua origem e, principalmente da sua presença em Guarapari:
Intitulado “Rendeiras”, transcrevemos o texto por sua importância histórica:
“A história da origem da renda de bilro é repleta de lendas encantadoras, em cujo enredo o amor é quase sempre motivo central. Ora é o caso de uma jovem camponesa que, encontrando-se em situação desesperadora, promete à virgem Maria renunciar ao noivado, caso lhe venha ela em seu auxílio; e a virgem, atendendo-lhe a súplica, faz surgir, estampado no avental da jovem, o modelo da primeira renda. A moça, executando tão fino modelo, aufere com sua venda, abundantes meios de sobrevivência. Ora é daquele marinheiro que, havendo trazido de longínquas paragens lindo coral para sua noiva, esta, ao vê-lo partir para guerra, toma a resolução de reproduzir a imagem da preciosa dádiva em delicada renda.
Imitando o trabalho das aranhas, a inconsolável noiva do filho de poderoso cacique executa a primeira renda “nhanduti”, tomando por modelo a teia que havia ela tecido na caverna do valente caçador, morto por um jaguar na espessura da floresta.
E de muitas outras maneiras procura a imaginação da gente simples explicar a origem da renda, este delicado trabalho, adorno da indumentária feminina e que outrora o foi também das ricas vestimentas dos cavalheiros, ao tempo em que os punhos de renda dos uniformes e os punhos de aço das espadas não apresentavam antagonismo nem contradição.
A renda de bilro ou de almofada é mais conhecida no Brasil pelo nome de renda do Norte, muito embora seja executada no país inteiro.
No Estado do Espírito Santo é mais comum a sua confecção.
Em algumas fazendas havia escravas ou servas especializadas nessa indústria doméstica. Nesse tempo, as senhoras vestiam roupas largamente enfeitadas de rendas e bordados. Nas várias saias usavam babados com adornos de renda fina. A roupa de cama, de mesa e até as toalhas de rosto apresentavam barras de rendas. Qualquer família tradicional de nossa terra ainda conserva alguma toalha adornada de renda, crochê ou crivo. E talvez pessoas ainda existam que se recordem de vê-las alvas como a neve, admiravelmente engomadas, postas no porta-toalhas dos quartos de dormir, junto à bacia e ao jarro de porcelana colorida.
Quando cheguei a Guarapari e entrei em contato com a vida da cidade, logo observei que ali havia muitas rendeiras. Como todas as casas são térreas e sem jardim à frente, não é necessário ser indiscreto para que se tenha visão perfeita do interior da sala de visitas. Aliás, quase todas as rendeiras preferem trabalhar junto à janela ou à porta, provavelmente por motivo de melhor iluminação.
Segundo me informaram as mais antigas rendeiras do lugar, desde épocas remotas esse gênero de indústria doméstica é executado em Guarapari. Expressa-se assim uma delas sobre o assunto:
– Parece que a renda, aqui, nasceu com a localidade. Na minha família, por exemplo, até a geração de que tenho notícia, todas as mulheres faziam renda. Desde os seis anos de idade começam as meninas a aprender essa arte.
Em 1949 faleceu em Guarapari uma rendeira com 120 anos deidade. Tinha três irmãs, e trabalharam todas até morrerem cada qual com mais de 100 anos. Chamavam-se as “Tijorge”. Diziam elas que sua mãe fora exímia rendeira.
Guarapari foi outrora conhecida como o lugar das rendas. De fato, não havia casa onde não fossem vistas uma ou mais rendeiras trabalhando, não raro até de noite, à escassa luz de lampião, quando não havia eletricidade. Contam que havia pessoas corcundas à força de fazem renda. Fabricavam-nas para adorno das próprias roupas e para venderem. Aliás, foi talvez a renda, no Brasil, um dos primeiros trabalhos com que as mulheres procuravam auferir algum provento. Feita quase sempre em localidades afastadas dos grandes centros, ou em zonas litorâneas onde as profissões dos maridos não eram bastante lucrativas, constituía fonte para formação de um pecúlio destinado à aquisição de roupas e objetos de uso doméstico, para o que raramente era bastante o incerto ganho oriundo das atividades dos maridos.
Em geral são rendeiras as mulheres dos pescadores, o mesmo não se verificando com relação às esposas dos lavradores e trabalhadores rurais.
Outrora, quando o município não mantinha contato fácil e frequente com outras localidades do estado, pessoas havia que obtinham meios de subsistência comprando e revendendo rendas. Hoje, toda a produção é vendida diretamente pelas rendeiras, até por meio de reembolso postal.
Segundo afirmam os moradores, o número de rendeiras no município decresceu de 90%. As meninas não querem mais trabalhar com os bilros. Preferem colher búzios e conchas nas praias, fazerem crochê ou tricô, pois é mais fácil colocar o novelo de lã sob o braço e mover as agulhas passeando pelas ruas ou assentadas à sombra das amendoeiras do litoral.
Em Meaípe, entretanto, naquele distrito próximo à sede, a indústria rendeira não sofreu modificação. Todas as mulheres, desde meninas, trabalham em rendas. Quando um automóvel se detêm naquela localidade, o turista é imediatamente cercado por mulheres e crianças que procuram vender-lhe as rendas por elas fabricadas. E o viajante é empolgado por uma estranha sensação de paz e sossego naquela pequenina vila onde ainda não chegaram a poeira, o ruído e a inquietude da cidade moderna. As casas, quase todas construídas de frente para a baia maravilhosa, que parece imensa bacia azul-turquesa, a igrejinha de Santana, muito pequenina e branca, no alto de um cômoro verde, sem nenhuma construção em torno, tudo aquilo, e aquela gente pacífica e simples, trabalhando como formiguinhas, os homens fazendo ou consertando as suas redes de o pescar, estendidas no chão, as mulheres assentadas às janelas ou à soleira das portas, trocando os bilros sobre as almofadas, tudo aquilo aparece aos olhos do turista como se fora uma visão de sonho.
A almofada para a confecção da renda é cheia com folhas secas de bananeira ou capim seco. Os bilros são fabricados pelas próprias rendeiras ou por homens que os vendem. A haste é de madeira, trabalhada a canivete, e as esferas das extremidades com o chamado côco de ari, côco de uma espécie de palmeira que se desenvolve por perto dos brejos. Para abrirem no côco a cavidade onde se introduz a haste, aquecem ao fogo a extremidade de um ferro e quando esta fica em brasa aplicam-na contra o côco. Geralmente seguro na junta de uma janela.
O encosto dos bilros é feito, por algumas rendeiras, com um arame grosso apontado na extremidade, tendo presa na extremidade oposta a semente de uma planta denomina piripiri. Tais sementes são brilhantes como contas de vidro e bastante duradouras. Também o fazem com o esporão de alguns peixes, arraia, robalo, garoupa, etc.
As rendeiras gostam de conservar os bilros que pertenceram à família ou com os quais aprenderam a trabalhar. Outrora criavam modelos próprios para o desenho das rendas, porém hoje não mais fazem assim, devido á grande facilidade de obterem novos padrões. Muitos pontos de renda tem nomenclatura especial: matachim, aranha, pano aberto, pano fechado, pano baiano, trancinha e trocadinho.
Algumas rendeiras trabalham silenciosamente; outras, pelo contrário, gostam de cantar e recitar versos enquanto manejam os bilros.
Disseram-me que produzem muito mais quando encontram com quem conversar.
Ao se percorrer a cidade durante o dia, em horas de pouco movimento, ouve-se, de onde em onde, o som dos bilros entrebatendo-se. Na tranquilidade das ruazinhas bucólicas, há qualquer coisa de profundamente acolhedor naquele som. E, à semelhança do ruido da máquina de costura ou das notas do piano tocado pela criança que inicia nas escolas, vem-nos logo a lembrança do lar e da família, despertando saudades de épocas distantes no tempo e que se afastam cada vez mais de nós.
Ao escutá-lo, recordo-me de minha avozinha, cabelos brancos, óculos um pouco afastados dos olhos, assentada numa cadeirinha baixa, junto à janela envidraçada, na velha casa da fazenda, cantarolando a meia voz, o seu canto misturando-se ao estalidar dos bilros que se chocavam ligeiros, movidos pelas mãos que tantas vezes me abençoaram, nos belos dias da minha infância.
A publicação traz também a notícia de que alunas do Colégio do Carmo foram fazer pesquisa junto às rendeiras:
Pesquisa Folclórica entre as Rendeiras de Guarapari
“A 23 de outubro deste ano, o Centro de Pesquisas Folclóricas “COLÉGIO DO CARMO”, instalado em 23 de agosto, projetava e levava a efeito sua primeira pesquisa de campo, sob orientação da Comissão Espírito-Santense de Folclore.
Em ônibus fretado por esta, trinta e duas alunas do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora (Carmo), distribuídas previamente em grupos, munidas de máquinas fotográficas, papel e lápis, e do roteiro distribuído pela Comissão de Folclore – encaminharam-se, cedo, rumo à Guarapari, onde procederam à colheita de dados e materiais relativos às rendas de bilro, entrevistando, amistosamente, as rendeiras da chamada “Rua das Bonecas”, naquela cidade. A pesquisa estender-se depois até a vila de Muquiçaba, fronteira a Guarapari, durando, ao todo perto de quatro horas.
Todo o trabalho se processou regularmente, interessadas as alunas e interessadas as próprias rendeiras que, pacientemente e sem constrangimento, forneceram os elementos pedidos, dando às mocinhas do Centro de Pesquisas, demonstração do belo trabalho de “trocar os bilros”, fazendo rendas à vista das curiosas pesquisadoras.
Com os dados colhidos no local da pesquisa, os vários grupos apresentaram, dias depois, o seu relatório minucioso e bem lançado, quase todos com amostras de bilros, “piques”, encostos e rendas, pedidas às velhas rendeiras capixabas.
Foi o seguinte o questionário adotado para essa primeira pesquisa, retirado, em quase todo o seu conteúdo, do interessante e prestimoso livro “A renda de bilro e sua aculturação no Brasil” (Rio, 1948, publicação da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etmologia), de Luiza e Arthur Ramos:
1 – Nomes das Rendeiras – idade -cor – naturalidade: Outros ofícios que exercem – com quem aprenderam a fazer renda – se vendem as rendas – onde -a quanto. Se há intermediários. Situação econômica das rendeiras.
2 – Utensílios da renda de bilros – a almofada – forma – dimensões. Como é feito, material externo e interno(enchimento). Apoio das almofadas (rodilhas, cestos, caixotes, bancos…) – Que nomes dão a esses apoios. Modo de sentar das rendeiras frente à almofada. Como trabalham – isoladamente, em grupos, em que dias da semana.
3 – Os bilros – forma – dimensões. Madeiras empregadas. Bilros de uma peça só. Bilros de côco e de sementes – nome dos côcos e sementes -bilros comprados, feitos pelas rendeiras, por seus maridos.
4 – Os piques ou modelos de renda. Como se preparam. De onde tiram os padrões. Cópias -coleções (pedir alguns para nosso arquivo).
5 – O fio. Nomes e qualidades das linhas. Fio de algodão, de seda, de fibras. Quem fornece os fios, se usam fusos, se possuem engenho de algodão. Alfinetes, espinhos para prender as rendas – nomes dos espinhos que usam.
6 – Como enrolam o fio nos bilros – montagem da renda na almofada. Como colocam os piques -pontos iniciais. Número de bilro usados. Levantamento da renda (retirada da almofada).
7 – Nomes dos vários pontos. Dos padrões. Das rendas.
8 – Cantigas – contos – provérbios – adivinhas – crendices ligadas às rendas ou às rendeiras. Que cantam durante o trabalho. Se contam histórias. Se fumam -o que fumam: cachimbo, cigarro. Linguagem das rendeiras.
Foi, sem dúvida, promissora demonstração de capacidade das nossas jovens, quase todas professorandas que, assim, estarão mais aptas a proceder outras coletas de material demológico, dentro da classificação que as professoras primárias lhes dá o Governo do Estado – de “colaboradoras e informantes da Comissão E.S. De Folclore”, conforme preceitua o ato nº 15, de 18 de agosto do corrente ano de 1952.
6 – COLETÂNEA DE ESTUDOS E REGISTROS DO FOLCLORE CAPIXABA – 1944-1982

GUILHERME SANTOS NEVES
Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo – Vitória, 2008 – 1o volume
Seleção, organização e edição de texto: Reinaldo Santos Neves
COLETÂNEA DE ESTUDOS E REGISTROS DO FOLCLORE CAPIXABA:
1944-1982
“Deve-se ressaltar: por registrarem e interpretarem as manifestações folclóricas espírito-santenses de uma época irremediavelmente passada, a perenidade destes artigos está garantida numa tríplice condição. Primeiro, por darem notícia de fatos folclóricos já desaparecidos, ou que se modificaram substancialmente. Exemplos: assim era realizada a festa da Penha; dessa forma se dançava o alardo; de tal maneira é que se faziam as rendas em Guarapari” – Pg. 39
“Por que o artesanato foi pouco contemplado nesses escritos de Guilherme Santos Neves? Algumas explicações podem ser avançadas. O artesanato ainda estava muito presente na vida cotidiana dos capixabas daquela época; quer dizer, seu caráter utilitário era ainda muito evidente, o que talvez tenha contribuído para ser considerado como não-prioritário nos estudos folclorísticos, direcionados de preferência às outras manifestações que corriam risco de desaparecimento. Mas o que no artesanato capixaba se distinguia (as rendas de bilro, as panelas de barro, etc.) foi objeto de sua preocupação. Pg. 41
“A partir do dia 22 de agosto [de 1949] foi aberta à curiosidade e visita do público a “Exposição de material folclórico”, nas vitrines da Casa Philco. Ali foram expostos, além de parte da preciosa coleção de bonecas que pertenceu ao escritor Saul de Navarro, gentilmente cedida pela Academia Espírito-santense de Letras, centenas de objetos de arte popular e tradicional, jogos e brinquedos infantis, indústria do povo etc. Desse material podemos citar: colares de conchas (Guarapari), setas, bodoques, casaca – instrumento de música – (Nova Almeida), bilros e rendas no próprio almofadão, agulhas de fazer rede de pescar, figas, papagaio… Pg. 321
7 – Vultos, Fatos e Lendas Linharenses – 1975


Vultos, Fatos e Lendas Linharenses – Lastenio Calmon Junior
Ano: 1975 / Páginas: 248
Idioma: português
Composto e impresso na EDITORA LITTERA MACIEL Ltda.
Rua Genebra, 881 – Nova Suiça – Belo Horizonte – Minas Gerais
Assim era repassada a vida do Linhares de outras eras entre as “rendeiras”, que tanto trabalhavam com os ágeis dedos como com a língua fuchiqueira.
Assim era o Linhares que eu conheci, lindo de morrer, mas, decadente, parado no espaço, com suas antigas construções se arruinando e caindo aos poucos, as ruas empastadas de capim rasteiro tousado pelos animais, com trilhos pelo meio, por onde transitavam os seus poucos habitantes… Pg. 165
8 – Guarapari, muito mais que um sonho lindo – 2011
Bueno, Beatriz – Guarapari, muito mais que um sonho lindo – Beatriz Bueno – Brasilia Thesaurus 2011 – 224p.
Sobre a viagem de Dom Pedro II ao município de Guarapari, a escritora transcreve escritos de Levi Rocha sobre as impressões do imperador:
“Há cultura de café e gêneros alimentícios, mas a formiga persegue muito.
Se a imperatriz houvesse descido em terra, as peritas bordadeiras da vila não perderiam a ocasião de lhe mostrar as suas famosas e delicadas rendas de bilros ou crochê, trabalho de paciência do qual gozavam fama”. Pg.38
No capítulo III, sobre prefeitos do Século XX, a autora traz fatos importantes:
“Segundo Eurípedes Queiroz do Valle – Pequeno Dicionário Informativo do Espírito Santo, 2ª Edição – 1959
No senso de 1950, a população totalizava 12.350 habitantes, dos quais 2.312 se localizavam na sede. Guarapari era o maior exportador de areias monazíticas do estado. O comércio era pequeno. “Muito apreciada é a sua indústria de renda de bilro e a de utensílios, adornos, recuerdos e enfeites de conchas”. Pg.65
“Em 1962 é inaugurada a luz da Escelsa, com uma produção de 1000 kw, os postes vieram de Linhares. Para a solenidade foi montado um cenário de maternidade, na carroceria de um caminhão; na porta, Dona Conceição Teixeira, parteira famosa simbolizando o nascer de uma criança – dando a Luz e vestida a caráter. Compondo a encenação a rendeira Dona Gedi, com sua almofada e o Sr. Urbano (marido de Dona Conceição)”. Pg.66
Quando descreve o artesanato produzido no município, a autora dedica espaço importante para a renda de bilro:
“ARTESANATO”
1 – RENDA DE BILRO
As rendeiras do litoral sul do Espirito Santo, especialmente em Guarapari, produzem um artesanato da mais singela beleza e refinada técnica. Faltam incentivos e divulgação, mas como genuína fonte da cultura, elas persistem.
Supõe-se que esse artesanato foi introduzido pelos colonizadores, visto que os vestidos, as anáguas das damas e vestes dos cavalheiros, bem como as roupas de cama, toalhas de lavabo e de mesa, eram ricamente enfeitados de rendas. As rendas eram confeccionadas pela criadagem. Em Guarapari quem as faz são as mulheres dos pescadores e o que arrecadam com a venda serve para complementar o orçamento familiar. Pg. 191
Utilizam na fabricação de renda:
- Uma almofada, feita pelas próprias rendeiras que as enchem com folha de bananeira seca
- Um papelão com o esquema da renda furado com alfinetes. No verso dos papelões eram anotados versos e letras das músicas que cantarolavam enquanto teciam.
- Os bilros são pequenos fusos que consistem numa haste com esfera com coco de Iri ou de Emburi, de uma espécie de palmeira que se desenvolve perto dos brejos. O coco é perfurado com uma ponta de ferro aquecido para permitir o encaixe da base de madeira, a haste, que é trabalhada a canivete. A linha é enrolada e vai se desenvolvendo á medida que a renda é tecida. A quantidade de bilros depende da renda que se está criando. Os melhores bilros são os que fazem zuada, nem pesados nem leves, caem naturalmente e esticam o fio. Antigamente os esporões de peixes e ferrão do rabo da arraia eram usados como encosto dos bilros, bem como um arame grosso com uma das pontas polida e a outra envergada.
O cartão perfurado com piques, ou seja, o esquema da renda é preso sobre a almofada para ganhar a confecção. Trocando os bilros, isto é, entrelaçando os fios que estão presos nos bilros com uma habilidade fantástica, as artesãs produzem delicadas e belas rendas de entremeio e bico, estreitas e largas, flor de mamão macho, margarida, galinha com seus pintinhos e aplicações como: lacinhos, cestinhas, abacaxis, laranjas etc. Toalhinhas para bandeja, mesa, apoio de copo, golas e palas.
Os pontos recebem nomes especiais que variam de acordo com a região, como pano de crivo, trancinha, trocadilho, trançado, matachim, trança, pano de serêncio, pano fechado, pano baiano, pano inteiro, pano aberto.
Também é costume conservar os bilros da família, com os quais aprenderam a trabalhar. Pg. 192
RENDEIRAS DE GUARAPARI E MEAÍPE
Ana Maria dos Santos, conhecida como Dona Aninha, morava na Rua do Trabalho e começou a fazer renda antes dos sete anos. Filha da famosa rendeira Vitória Maria da Conceição – Vovó Vitorinha – brincando de rendeira, colocava os bilros ao lado da almofada de sua mãe e foi assim que se tornou artesã e escultora de rendas.
Olga Pinheiro de Jesus, mora no Caminho da Fonte e aprendeu esta arte com sua mãe, Geraldina da Conceição Pinheiro e seus bilros foram feitos pelo seu pai. Ultimamente seu trabalho se resume em fazer demonstrações. Dona Olga tem uma memória fantástica e muito do que conseguimos resgatar, da história, do artesanato e do folclore (letra e música), foi graças aos depoimentos desta senhora, que é a memória viva de Guarapari.
Dona Estela, esposa do Senhor José Lyra, há pouco falecida, criava rendas diferentes e era habilidosa bordadeira, todos se reuniam a sua volta para fazer rendas. Ensinou suas filhas gêmeas Paixão e Madalena.
Dona Alzira Vieira de Mattos Bresciani, nasceu em Meaípe em 1910 e faleceu em 1985. Aprendeu a fazer renda aos cinco anos de idade, com sua madrinha Belarmina Vieira de Mattos. Dona Zizi, como era conhecida, foi uma rendeira famosa, quem vinha comprar suas rendas era a esposa do Presidente Geisel.
Dona Carlinda, residente na rua São Pedro, em Muquiçaba.
Maria Brandão, residente no Caminho da Fonte, também era famosa rendeira.
Dona Zota, fazia blusas e vestidos de renda.
As irmãs Maria e Laura, residentes no centro, em frente à agência dos Correios.
Dona Zulmira Fernandes, fazia renda desde criança.
Dona Maria Julieta, também falecida, morava em frente ao Fórum (hoje Câmara de Vereadores) na rua Getúlio Vargas; podia ser vista pela janela tecendo rendas e sempre pronta para um papo animado com os que passavam. Pg. 193
Em 1989, a Secretaria Municipal de Cultura criou a Casa da Rendeira, em Meaípe e foram contratadas 6 rendeiras, contrato que durou pouco tempo. Antes elas ficavam na Casa da Cultura de Guarapari, onde demonstravam esse importante artesanato. Abaixo os nomes destas artistas do bilro:
Antônia Almeida Leal
Arlete Santana Leal
Lúcia Helena Santana Leal
Maria Auxiliadora S. Serafim
Maria José Serafim Leal
Marilda Silva Souza
A autora ainda presta homenagem às rendeiras:
Nossa homenagem a todas as rendeiras:
NOSSAS RENDEIRAS
Beatriz Bueno – 1991
Antigas senhoras,
Serenas, tranquilas,
Seus dos são ágeis,
Iguais bailarinas
Na dança dos bilros
Cuja sinfonia,
São teias de renda.
Alguns cantos entoados pelas rendeiras, no ato de trançar, foram colhidos pela Folclorista Isabel Serrano. Pg.194
Sou rendeira, faço renda
Tendo renda na almofada;
Quando vejo o meu amor,
Não faço renda nem nada.
Aqui faço minha renda,
A renda dos corações;
Os alfinetes que espetam
São nossas ingratidões.
Jacaré pau de espinho
Caranguejo anda na praia,
Também anda meu benzinho
Na renda da minha saia.
Essa almofada me mata,
Estes bilros me consomem;
Os alfinetes me espetam
A renda me tira a fome.
Tiro renda, boto renda,
Tiro renda da almofada;
Por causa do meu amor
Não faço renda nem nada.
Menina levanta a saia,
Não deixa a renda arrastar,
A renda custa dinheiro,
Dinheiro custa ganhar. Pg. 195
9 – ARTESANATO BRASILEIRO – Edição FUNARTE – Rio de Janeiro 1986

ARTESANATO BRASILEIRO – Edição FUNARTE – Rio de Janeiro 1986

Rendeira trabalhando na almofada, utilizando a técnica dos bilros. Espirito Santo – Pg. 111

Paninho confeccionado seguindo as técnicas dos bilros. Espirito Santo – Pg. 113
10 – ARTESANATO BRASILEIRO – Edição FUNARTE – Rio de Janeiro 1986

ARTESANATO BRASILEIRO – Edição FUNARTE – Rio de Janeiro 1986
“No Estado do Espírito Santo, existem rendeiras nas praias de Nova Almeida, Guarapari e Meaípe. – Pg. 49
As denominações dos motivos adquirem aspectos regionais, recebendo das artesãs grande carga criativa. Outros motivos se mantem numa linha tradicional, passando de geração a geração.
Na Bahia: bico de rainha, renda do amor despedaçado, do coração desencontrado.
No Maranhão: farinha seca, entremeio do sabão, bico de aliança, renda da esposa, bico de dente de rato.
Ainda no Nordeste: bico de percevejo, bico de xexéu, bico do abano, bico da baratinha, renda de pé de coelho, renda de coentro, bico pestana.
No Espirito Santo: bico rabo de pavão, bico de bilro grosso, bico das margaridas, aplicação de abacaxi. Pg. 51

Entremeio do arco – pontos: meio ponto e perna cheia – Ilha de Santa Catarina, Santa Catarina.
Entremeio do matachim. Guarapari, Espirito Santo Pg. 64, 65
Entremeio – pontos: meio trocado e trocado inteiro, Cabedelo, Paraiba.
Entremeio, renda regalada. – Ilha de Santa Catarina, Santa Catarina.
Entremeio do camarão. – Arraial do Cabo.- Estado do Rio de Janeiro.
Entremeio quatro rosas – Arraial do Cabo.- Estado do Rio de Janeiro.
Entremeio da jiboia – Campos – Estado do Rio de Janeiro.

Avó, filha e neta fazem renda de bilro. Observa-se a continuidade da técnica artesanal através das gerações. Guarapari, Espírito Santo. Pg. 78, 79
UTILIZAÇAO E COMERCIALIZAÇÃO
No Espirito Santo, o principal centro de vendas é a praia de Guarapari, polo turístico do Estado. Entretanto, nas outras cidades produtoras, é também adquirida a renda de bilros por turistas, em geral provenientes de Minas Gerais, que passam o verão nas praias capixabas. Pg. 86

Detalhe de pala em renda de bilro – bico de pavão – Guarapari, Espirito Santo. Pg. 88

Aplicações em renda de bilro – Ao centro a aplicação do abacaxi – Guarapari, Espirito Santo, e as demais da Ilha da Maré, Bahia. Pg. 90
11 – MÃO E OBRA – Artesanato no Espírito Santo – 2001

MÃO E OBRA
Artesanato no Espírito Santo
SENAC.DR.ES. Mão e Obra: artesanato no Espírito Santo/
Renato Pacheco; Luiz Guilherme Santos Neves; Humberto Capai. Vitória: SEBRAE, 2001. Pg – 147
“RENDAS E BORDADOS
Rocas e teares sempre foram instrumentos femininos que integraram o mobiliário das casas brasileiras até o começo deste século. Presas a esses aparelhos, as mulheres se mantinham ocupadas, vivendo a maior parte do tempo dentro do lar, entregues às prendas domesticas, expressão que, aliás, acabou qualificando a dona de casa numa verdadeira categoria civil. Os piques (guias), bilros e almofadas das rendeiras tiveram papel equivalente ao das rocas e teares.
No Espírito Santo, tornaram-se famosas as rendeiras de Guarapari (Meaípe) e Anchieta (Ubu). Trabalho tipicamente artesanal, transmitia-se pelo aprendizado familiar, de mãe para filha. Favorecia sua difusão a abundância de algodão no Espírito Santo, pois, na forma tradicional, a própria rendeira fiava o algodão de que ia necessitar para seu ofício. O trabalho, cansativo e paciente, era mitigado com cânticos que passavam de rendeira a rendeira, numa receita comum.
Esta almofada me mata,
estes bilros me consomem,
os alfinetes me espetam,
a renda me tira a fome.
A indústria textil, em sua expansão mundial, afetou o artesanato das rendeiras, que estão em processo de extinção no Espírito Santo, até porque as novas gerações não se interessam pelo aprendizado da técnica. Mesmo assim, em Meaípe e Anchieta ainda é possível encontrar rendeiras que continuam, como há 100 anos, tecendo, em almofadas de palha de bananeira, feitas por elas mesmas, centros de mesa, colchas, toalhas e golas, para vender a turistas, no verão, ou para uso próprio.
Além das confecções das rendeiras tradicionais, rendas, bordados e apliques são utilizados como arremates em toalhas de mesa e de banho e em colchas, vendidas em casa de artesanato e nas feiras do Espírito Santo”.
12 – Brasil Original artesanato: Espirito Santo – Vitória: SEBRAE/ES, 2017

Brasil Original artesanato: Espirito Santo – Vitória: SEBRAE/ES, 2017. Pg. 148
MUSEU VIVO DA BARRA DO JUCU
Fios e tecidos.

Bolsa rendeira
Código MVG02
Matéria prima: tecido
Técnica: aplicação em bordado patch
aplique manual e renda de bilro
Cores: diversas
Medidas: 37 x 37 x 12cm
Peso: 140g – Pg. 84

Mini bandeja rendas
Código MVR02
Matéria prima: madeira e renda
Técnica: marcenaria e bordado de bilro
Cores: natural
Medidas: 40 x 20 x 2cm
Peso: 1.110g – Pg. 84

Mesa bilro
Código MVR01
Matéria prima: madeira e renda
Técnica: marcenaria e renda de bilro
Cores: natural
Medidas: 55 x 32,5 x 68cm
Peso: 4.650g – Pg. 84
13 – Catálogo do artesanato capixaba – 2012

Catálogo do artesanato capixaba 2012 / Coordenação Geral e Assessoria Artística de Tereza Giuberti – Vitória: CSA, 2012. 500 p.:II.; 31cm
Guarapari
MICROREGIÃO METROPOLITANA

Produto Souvenir
Origem: Guarapari (Meaípe)
Matéria-prima: Linha, alfinetes, madeira e tecido.
Técnica: Montagem
Artesãs: Dilma Sant’ana, Jovelina Almeida Nascimento e Vera Lúcia Rocha Assunção.
RENDA DE BILRO OU DE ALMOFADA
“Onde há rede há renda”
Dito popular português e que sobreviveu no Brasil mostra a origem popular da renda de bilro. A técnica até hoje utilizada consolidou-se no Brasil no final do século XV.
A Renda de Bilro é também conhecida como Renda de Almofada. O que caracteriza a Renda de Bilro ou de Almofada é o que o próprio nome significa. É a renda tecida com bilros, tendo como base um papelão picado, também chamado de “pique”, afixado numa almofada cilíndrica por meio de alfinetes ou espinhos. A própria forma ou imagem da renda a distingue das demais elaboradas com agulha.
É o tipo de renda de maior abrangência geográfica no Brasil, situando-se notadamente no litoral. No Espírito Santo, as rendeiras são encontradas principalmente nas praias: em Guarapari – Meaípe; Conceição da Barra; São Mateus; Itapemirim; Marataizes.
Os bilros são pequenas peças de madeira e coco.
“Talvez nenhum outro traço cultural, comum a muitos povos, se haja aculturado de maneira tão completa no Brasil… A técnica hoje utilizada consolidou-se no final do século XV, época da descoberta e povoamento do Brasil.” ¹
A renda de bilro do Espírito Santo é considerada uma das mais bem executadas no Brasil, comparando-se às de Santa Catarina. Apesar de atualmente ter desaparecido em alguns municípios, ainda são encontradas nos locais acima mencionados. Em Meaípe, município de Guarapari, hoje as rendeiras estão organizadas na casa das rendeiras, servindo de modelo às de outros municípios. Os modelos variados e antigos de bicos, entremeios e panos de bandeja convivem atualmente com a criação de objetos condizentes com a realidade do mundo contemporâneo. São bolsas, jogos americanos, arcos para prender os cabelos. Dessa forma, perpetua-se um dos mais tradicionais artesanatos do Espírito Santo.

Produto: Renda
Matéria-prima: Linha
Técnica: Trançado
Artesãs: Dilma Sant’ana, Jovelina Almeida Nascimento e Vera Lúcia Rocha


Artesã Vera Lúcia Rocha Assunção tecendo renda de bilro

Artesã Dilma Sant’ana tecendo renda de bilro.
14 – Tertúlia Capixaba – Livros e Autores do ES

Bilros que fazem arte
Luiz Guilherme Santos Neves
Esta almofada me mata,
estes bilros me consomem;
os alfinetes me espetam,
a renda me tira a fome.
São apenas quatro versos, tirados do cancioneiro de trovas populares do Espírito Santo. No entanto, definem com eloquência versificada a sina das antigas rendeiras capixabas no tec-tec diário dos bilros de madeira do seu delicado e exaustivo ofício artesanal, herança que veio de Portugal.

Pelo que me consta, essas rendeiras tradicionais constituem espécie de artesãs na borda da extinção, conquanto, à custa de esforço pessoal e persistente dedicação, algumas sobrevivam heroicamente em raras localidades do Estado.
É o caso das rendeiras da colmeia cultural que é a Barra do Jucu, em Vila Velha. Dessas tomei conhecimento graças a um artigo (1) que me enviou o artista Kleber Galvêas sobre o seu querido reduto barrense. Marilena Soneghet, artesã literária que faz literatura com a sensibilidade de quem tece os bilros das suas crônicas com incomparável mestria, e que também se naturalizou barrense, confirma Galvêas: “Aqui na Barra, a Regina Ruschi fundou há alguns anos o Museu Vivo, que resgata tradições locais. Uma delas, a renda de bilro. Nas décadas de 40, 50, a Barra era um polo de rendeiras. Dessa turma só vivem duas, ambas com idade muito avançada”. De lambuja ainda cita, num segundo e-mail, os nomes de Enedina França de Paiva – “exímia rendeira, muito idosa, vive reclusa, extremamente tímida” – e Rosa Leão Malta.
No vídeo As rendeiras e o resgate da cultura na Barra do Jucu, da autoria de Marcel Carone, facilmente visitável na Internet, passo também a conhecer dona Julia Ferreira, da qual reproduzo close-up de suas habilidosas mãos em pleno manuseio dos bilros:

É incontestável que as velhas rendeiras do Espírito Santo, incansáveis Ariadnes na criação de rendilhados caprichosos e labirínticos, resistiram, enquanto puderam, ao embate com a tecelagem industrial que decretou, junto com o desinteresse das novas gerações pela prática do ofício, o fim de uma tradição manual que se fez muito para além de centenária, na zona litorânea do Estado.
Mas se por acaso ainda sobreviverem rendeiras em terras capixabas tecendo rendas com seus bilros lustrosos pelo constante manuseio diante de gordas almofadas com forro de palhas de bananeira, proclamo – e com satisfação o faço – a falha do meu conhecimento.
Pessoalmente, vi rendeiras infatigáveis pautando a vida pela guia das rendas nas praias de Nova Almeida, Manguinhos, Guarapari (especialmente em Meaípe) e Anchieta. Muito mais, conheceu-as meu pai, Guilherme Santos Neves, apaixonado pelas coisas do folclore capixaba que as estudou à larga e documentou a fundo, como demonstra a foto que tirou em 1952 de uma rendeira de Guarapari.

O ofício se revestia de características especiais: trabalho manual, tipicamente feminino e doméstico, transmitido através de gerações de mãe para filha, dentro de um mesmo grupo familiar. Favorecia sua difusão a abundância de algodoeiros no Espírito Santo, pois, na forma tradicional, a própria rendeira fiava o algodão de que ia necessitar em sua atividade artística.
O resultado era infalivelmente primoroso: toalhas, panos, paninhos e babados de renda de vários tipos, todos de extrema brancura e leveza, utilitários e ornamentais, vendidos em feiras ou nas casas das próprias artesãs.

Infalível também era o reconhecimento dessas casas, fosse pela fama das rendeiras, que corria terras, fosse porque, a uma simples visada no cômodo de entrada dos seus casebres, normalmente pobres e modestos, ali se viam as rendeiras entregues ao paciente manuseio dos bilros de madeira, ou, quando ausentes, lá estava o almofadão em que as rendas eram tecidas, posto num canto com o respeito devido a um paxá.

Só não ficavam à mostra, porque guardadas como tesouros pessoais de cada artesã, as guias de papelão pelas quais teciam seus arabescos rendados como navegantes conduzidas por secretos portulanos ciumentamente protegidos nos esconderijos domésticos.

Voltemos no tempo.
Diversos são os registros documentais que repicam do século XIX até nós focalizando as rendeiras do Espírito Santo.
Um deles, da autoria da norte-americana Júlia Louisa Keyes, data de 1867, e tem como localização a cidade de Vitória.
Júlia veio com a família para o Espírito Santo em busca de melhores condições de vida, depois do revés que os confederados do sul sofreram com a Guerra de Secessão de 1862 a 1865 nos Estados Unidos.
No diário sobre seus tempos de Brasil, registrou que, ao passar com a família por Vitória, a caminho do rio Doce, “alguns foram atraídos ao verem mulheres fazerem renda, sobre almofadas, o que era feito com grande destreza, usando inúmeros alfinetes e bilros. Esses bordados e pontos eram realmente belos e as senhoras usavam-nos para adornar seus vestidos. Suas fronhas são abertas em cada ponta, com um laço na borda da bainha. Garotinhas de todos os tamanhos têm conhecimento dessa arte e usam os alfinetes e bilros de forma tão ágil quanto suas mães, e as classes mais pobres fazem-na e a usam em grande quantidade. Descobrimos o artesanato como uma característica do sexo frágil, e nos surpreendemos com a beleza de seu trabalho com a agulha, em casas completamente desprovidas de luxo e escassas em conforto.” (2)
Bilros07
Seis anos antes da “descoberta” que encantou Júlia Keyes, o pintor francês François Biard registrou em seu livro Dois anos no Brasil que, ao passar por Vitória, entrou em várias choupanas onde moravam índios que o informante considerou bastante civilizados, tendo deparado, em quase todas, com mulheres que faziam rendas de bilro.
Por sua vez, o ilustre naturalista Augusto de Saint-Hilaire, quarenta anos antes de Biard, dá notícia, na obra em que trata da sua viagem ao Brasil, de que as mulheres do Espírito Santo (sempre elas) dedicavam-se à tecelagem do algodão, sendo que a maioria fazia rendas.
Diante de tais testemunhos, não é descabido supor que os três informantes tivessem até ouvido os versos da quadrinha das rendeiras, entoados, talvez, com o coro das “garotinhas de todos os tamanhos”, durante as entorpecidas horas do “tectecqueante” trabalho a que se dedicavam dedilhando bilros fio a fio, na fieira dos seus dias de artesãs infatigáveis.

(1) “Cultura barrense: pequeno inventário”.
(2) KEYES, Julia Louisa. Nossa Vida no Brasil: imigração norte-americana no Espírito Santo 1867-1870. Vitória : Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
15 – Mulheres Capixabas Incríveis – 2021

Mulheres Capixabas incríveis/coordenação Mônica Boiteux – 1 Vila Velha, ES; Ângela Cristina Pereira Xavier: Coletivo Delas, 2021
Olê, Mulheres Rendeiras
Houve um tempo em que quase todas as mulheres da Barra do Jucu faziam rendas de bilros para ajudar no sustento de suas famílias…eram Bernadinas, Davinas, Mariquinhas, Rosinhas, Marias, Enedinas, Zuzus, Leniras, Luzias, Penhitas, Menininhas, Carmelitas, Izauras, Palmerinas, Emilinhas, Genedis e tantas outras a tecer suas rendas.
Trazida da Europa pelos portugueses, a renda de bilro disseminou-se principalmente em áreas litorâneas dos estados do Nordeste e Sul do país. No Espirito Santo, tem-se registros de confecção de renda de bilro em Anchieta, Marataizes, Guarapari e Vila Velha.
Em Vila Velha, mais especificamente na Barra do Jucu, os registros datam do início do século passado, estando as rendeiras ainda vivas, na faixa de 80 e 90 anos. Tratava-se da maior fonte de renda das mulheres da localidade.
Os maridos, pescadores artesanais ou pequenos agricultores, ajudavam na comercialização, levando as rendas para vender no centro de Vila Velha, onde iam comercializar o excedente de suas produções. Na Vila, era comum ouvir o bater dos bilros ao se passar em frente às casas, na praça ou embaixo de alguma árvore. As mães, filhas e até mesmo os filhos faziam rendas para ajudar no orçamento da família.
Com o crescimento da comercialização das rendas industriais e a desvalorização dos trabalhos manuais, as rendeiras da Barra do Jucu, há aproximadamente 50 anos, foram parando de fazer rendas. Nos últimos anos, somente uma delas, D. Enedina França de Paiva, fazia rendas de bilro para sua própria família e para a igreja. As demais haviam parado e até mesmo se desfeito de seus materiais de trabalho.
Em 2005, iniciou-se um trabalho de resgate. Depois de uma longa pesquisa, confecção de bilros, piques, almofadas e cavaletes, em 2016, começou a funcionar a oficina de renda de bilro. Para tanto, D. Rosa Leão Malta, de 86 anos de idade, que já havia parado de produzir há mais de 30, se dispôs a ensinar na oficina criada pelo Museu Vivo da Barra do Jucu. A pesquisa e a coordenação desse trabalho sempre estiveram a cargo de Regina Maria Ruschi, moradora da comunidade.
Em 2017, as oficinas de rendas de bilros tornaram-se independentes, criando-se o Grupo Barra de Renda. Desde então, o grupo de rendeiras cresceu muito e passou a contar também com Mariza Vieira Gervasio e Rosiane Maria Biet como instrutoras. Em 2019, D. Rosinha faleceu, deixando ao grupo o legado desse oficio.
16 – Livro didático de alfabetização, do segundo trimestre, Governo do Estado ES – 2024

O livro didático de alfabetização, do segundo trimestre de 2024, produzido pelo Governo do Estado, traz um capítulo especial sobre a tradição da renda de bilro da Barra do Jucu e a lenda das rendeiras de Guarapari Conta história das rendeiras, da tradição e do modo de confeccionar a renda manualmente. Ainda traz exercícios para a criançada entender melhor esta arte. Ainda traz exercícios para a criançada entender melhor esta arte.





17 – Catálogo Transitar o Tempo – 2024/2025

O catálogo foi fruto da exposição “Transitar o Tempo”, do Museu Vale, Ministério da Cultura e Instituto Cultural Vale, uma coletiva com 30 artistas capixabas, que aconteceu na Casa Porto, no período de 03 de dezembro de 2024 a 30 de março de 2025. A instalação retratou o transitar entre as tranças das rendas de bilro e o balanço das redes de pesca, que se cruzam historicamente numa caminhada de encanto e magia.
A obra das rendeiras de bilro da Barrado Jucu, e que teve a participação do redeiro Xaxá, transita por muitas páginas do Catálogo, como exemplo dos dois registros abaixo:


Meaípe, uma vila cheia de histórias e lendas, polo resistência de rendeiras de bilro do ES
A relação entre a pesca artesanal e a renda de bilro é história e muito real em todo o litoral brasileiro. Por isso a expressão “onde há rede, há renda, cunhada para retratar esse casamento perfeito.
No Espírito encontramos rendeiras e suas histórias em quase todas as comunidades pesqueiras de nosso litoral. E uma comunidade que já foi um polo forte de renda de bilro, e que agora também está empenhada em recuperar esta tradição, é Meaípe, em Guarapari, ES.
Esta pequena e charmosa vila de pescadores já foi aldeia indígena e tem sua história marcada pela presença jesuítica. Mas também é povoada por lendas e histórias de pescadores, e reconhecida por suas exímias rendeiras, mulheres hábeis que encantavam pela beleza de sua arte.
Quem visita Meaípe logo se deslumbra com a capela de Nossa Senhora de Sant’Ana, construída no topo do Morro, com o mar a seus pés. Mas também fica conhecendo a lenda da Sereia que encantava os pescadores e os transformava em pedra. Veja a história contada pela professora Valéria Rocha em seu canal no Youtube. (https://www.youtube.com/watch?v=bJIiJoMvUlU&t=12s).
Ou então dá boas risadas com a história do xaréu que interrompeu a missa e virou apelido dos moradores locais.

Jornal A Tribuna – 17 de janeiro de 2007.
Lendas e realidade se misturam, mas a presença das rendeiras de bilro, com o encantamento do seu trabalho e a resistência ao modelo globalizado de consumo, são presença viva e marcante na história cultural da comunidade, e de todo município de Guarapari.
Assim como na Barrado Jucu, que também é rodeada de lendas, histórias e estórias, a confecção da renda manualmente sofreu com o advento da indústria têxtil que reduziu o tempo e o custo do produto, provocando, por pouco, o ofício de rendeira. Mas, como aqui, houveram aquelas que resistiram e nunca desistiram de suas almofadas, linhas e bilros, ou melhor, de continuar a produzir arte e beleza com com suas próprias mãos.
Entre essas mulheres que continuaram a lutar pela tradição das rendeiras em Meaípe podemos destacar dona Dilma e Dona Drauma, que resistiram na luta de não deixar o sonho morrer. Mesmo sem retorno financeiro, que antes era importante para as famílias, elas não deixaram esse conhecimento morrer, e graças ao empenho delas, e de outras mulheres que se uniram nesta tarefa, a comunidade assiste hoje o resgate da renda de bilro no município de Guarapari.
Isso nos permite afirmar que atualmente a renda de bilro voltou a fazer parte do cenário de Meaípe e a se somar a todos os atributos lindos que fazem da comunidade um dos cenários mais belos e cartão postal do Espírito Santo e do Brasil.
Registros históricos
O primeiro registro histórico da presença da renda de bilro no Espírito Santo está no livro Dois anos de Brasil, de Auguste François Biard, escrito entre 1798 e 1882, na audeia indígena de Santa Cruz. “…Eles já tinham certos hábitos civilizados. Entrei numa dessas habitações: em quase tôdas, mulheres faziam rendas de almofada.”.
Auguste Saint-Hilaire, em seu livro Segunda viagem ao interior do Brasil: Espirito Santo, 1779-1853 – registra: “Na provinda do Espirito Santo as mulheres não se escondem, como acontece em Minas; recebem o estrangeiro, conversam com elle e concorrem em fazer-lhe as honras da casa. A tecelagem de algodão é a que ellas são acostumadas; quasi todas também fazem renda mais ou menos commum e teem o habito de trabalhar acocoradas sobre pequenos estrados, de um pé, mais ou menos, acima do soalho”.
A americana Júlia Louisa Keyes registrou em seu livro Nossa Vida no Brasil – Imigração norte-americana no Espírito Santo, escrito entre entre 1967 e 1870: “ Alguns foram atraídos ao verem mulheres fazerem renda, sobre almofadas, o que era feito com grande destreza, usando inúmeros alfinetes e bilros. Esses bordados e pontos eram realmente belos e as senhoras usavam-nos para adornar seus vestidos”.
Guarapari aparece na citação de Levy Rocha Viagem de Pedro II do ES, 1916, quando fala da vida no município que, enquanto os homens cuidavam de outros afazeres: …” As suas mulheres já haviam aprendido a fazer rendas de bilros e eles, sempre peritos na confecção de redes e tarrafas de tucum, estariam melhor como pescadores”.
Publicação da Comissão Espírito-santense de Folclore em 1952

A publicação FOLCLORE, órgão da Comissão Espírito-santense de Folclore, com direção de Guilherme Santos Neves, publicada em julho-dezembro de 1952, traz um estudo da folclorista Isabel Serrano, um verdadeiro “achado” sobre a história desta arte, sua origem e, principalmente da sua presença em Guarapari e Meaípe:
Intitulado “Rendeiras”, transcrevemos o texto por sua importância histórica:
… Segundo me informaram as mais antigas rendeiras do lugar, desde épocas remotas esse gênero de indústria doméstica é executado em Guarapari. Expressa-se assim uma delas sobre o assunto:
– Parece que a renda, aqui, nasceu com a localidade. Na minha família, por exemplo, até a geração de que tenho notícia, todas as mulheres faziam renda. Desde os seis anos de idade começam as meninas a aprender essa arte.
Em 1949 faleceu em Guarapari uma rendeira com 120 anos deidade. Tinha três irmãs, e trabalharam todas até morrerem cada qual com mais de 100 anos. Chamavam-se as “Tijorge”. Diziam elas que sua mãe fora exímia rendeira.
Guarapari foi outrora conhecida como o lugar das rendas. De fato, não havia casa onde não fossem vistas uma ou mais rendeiras trabalhando, não raro até de noite, à escassa luz de lampião, quando não havia eletricidade. Contam que havia pessoas corcundas à força de fazem renda. Fabricavam-nas para adorno das próprias roupas e para venderem. Aliás, foi talvez a renda, no Brasil, um dos primeiros trabalhos com que as mulheres procuravam auferir algum provento. Feita quase sempre em localidades afastadas dos grandes centros, ou em zonas litorâneas onde as profissões dos maridos não eram bastante lucrativas, constituía fonte para formação de um pecúlio destinado à aquisição de roupas e objetos de uso doméstico, para o que raramente era bastante o incerto ganho oriundo das atividades dos maridos.
Em geral são rendeiras as mulheres dos pescadores, o mesmo não se verificando com relação às esposas dos lavradores e trabalhadores rurais.
Outrora, quando o município não mantinha contato fácil e frequente com outras localidades do estado, pessoas havia que obtinham meios de subsistência comprando e revendendo rendas. Hoje, toda a produção é vendida diretamente pelas rendeiras, até por meio de reembolso postal.
Segundo afirmam os moradores, o número de rendeiras no município decresceu de 90%. As meninas não querem mais trabalhar com os bilros. Preferem colher búzios e conchas nas praias, fazerem crochê ou tricô, pois é mais fácil colocar o novelo de lã sob o braço e mover as agulhas passeando pelas ruas ou assentadas à sombra das amendoeiras do litoral.
Sobre Meaípe
Em Meaípe, entretanto, naquele distrito próximo à sede, a indústria rendeira não sofreu modificação. Todas as mulheres, desde meninas, trabalham em rendas. Quando um automóvel se detém naquela localidade, o turista é imediatamente cercado por mulheres e crianças que procuram vender-lhe as rendas por elas fabricadas. E o viajante é empolgado por uma estranha sensação de paz e sossego naquela pequenina vila onde ainda não chegaram a poeira, o ruído e a inquietude da cidade moderna. As casas, quase todas construídas de frente para a baia maravilhosa, que parece imensa bacia azul-turquesa, a igrejinha de Santana, muito pequenina e branca, no alto de um cômoro verde, sem nenhuma construção em torno, tudo aquilo, e aquela gente pacífica e simples, trabalhando como formiguinhas, os homens fazendo ou consertando as suas redes de o pescar, estendidas no chão, as mulheres assentadas às janelas ou à soleira das portas, trocando os bilros sobre as almofadas, tudo aquilo aparece aos olhos do turista como se fora uma visão de sonho.
A almofada para a confecção da renda é cheia com folhas secas de bananeira ou capim seco. Os bilros são fabricados pelas próprias rendeiras ou por homens que os vendem. A haste é de madeira, trabalhada a canivete, e as esferas das extremidades com o chamado côco de ari, côco de uma espécie de palmeira que se desenvolve por perto dos brejos. Para abrirem no côco a cavidade onde se introduz a haste, aquecem ao fogo a extremidade de um ferro e quando esta fica em brasa aplicam-na contra o côco. Geralmente seguro na junta de uma janela.
O encosto dos bilros é feito, por algumas rendeiras, com um arame grosso apontado na extremidade, tendo presa na extremidade oposta a semente de uma planta denomina piripiri. Tais sementes são brilhantes como contas de vidro e bastante duradouras. Também o fazem com o esporão de alguns peixes, arraia, robalo, garoupa, etc.
As rendeiras gostam de conservar os bilros que pertenceram à família ou com os quais aprenderam a trabalhar. Outrora criavam modelos próprios para o desenho das rendas, porém hoje não mais fazem assim, devido à grande facilidade de obterem novos padrões. Muitos pontos de renda têm nomenclatura especial: matachim, aranha, pano aberto, pano fechado, pano baiano, trancinha e trocadinho.
Algumas rendeiras trabalham silenciosamente; outras, pelo contrário, gostam de cantar e recitar versos enquanto manejam os bilros.
Disseram-me que produzem muito mais quando encontram com quem conversar.
Ao se percorrer a cidade durante o dia, em horas de pouco movimento, ouve-se, de onde em onde, o som dos bilros entrebatendo-se. Na tranquilidade das ruazinhas bucólicas, há qualquer coisa de profundamente acolhedor naquele som. E, à semelhança do ruido da máquina de costura ou das notas do piano tocado pela criança que inicia nas escolas, vem-nos logo a lembrança do lar e da família, despertando saudades de épocas distantes no tempo e que se afastam cada vez mais de nós”.
Registros fotográficos da publicação da Comissão Espírito-Santense de 1952:





Alunas do Colégio do Carmo, em Vitória, fazendo pesquisa de campo junto às rendeiras de Guarapari.

Mas mesmo com todo o encantamento que a renda de bilro e as rendeiras produzem, resistir ao tempo da pressa e do baixo custo que a produção industrial gera é muito difícil. O impacto foi grande e poucas foram as rendeiras que continuaram com o trabalho artesanal.
Manter a tradição passada de geração em geração passou a ser mais que um ato de resistência, mas uma rebeldia de mulheres que sabiam da importância desta atitude para a cultura popular da região.
No livro “Guarapari, muito mais que um sonho lindo,” a pesquisadora e ativista pela preservação do patrimônio histórico e ambiental, Beatriz Bueno, registra:
Renda de Bilro
“As rendeiras do litoral sul do Espirito Santo, especialmente em Guarapari, produzem um artesanato da mais singela beleza e refinada técnica. Faltam incentivos e divulgação, mas como genuína fonte da cultura, elas persistem.
Supõe-se que esse artesanato foi introduzido pelos colonizadores, visto que os vestidos, as anáguas das damas e vestes dos cavalheiros, bem como as roupas de cama, toalhas de lavabo e de mesa, eram ricamente enfeitados de rendas. As rendas eram confeccionadas pela criadagem. Em Guarapari que as faz são as mulheres dos pescadores e o que arrecadam com a venda serve para complementar o orçamento familiar, p191
Utilizam na fabricação de renda:
Uma almofada, feta pelas próprias rendeiras que as enchem com folha de bananeira seca
Um papelão com o esquema da renda furado com alfinetes. No verso dos papelões eram anotados versos e letras das músicas que cantarolavam enquanto teciam.
Os bilros são pequenos fusos que consistem numa haste com esfera com coco de Iri ou de Emburi, de uma espécie de palmeira que se desenvolve perto dos brejos. O coco é perfurado com uma ponta de ferro aquecido para permitir o encaixe da base de madeira, a haste, que é trabalhada a canivete. A linha é enrolada e vai se desenvolvendo à medida que a renda é tecida. A quantidade de bilros depende da renda que se está criando. Os melhores bilros são os que fazem zuada, nem pesados nem leves, caem naturalmente e esticam o fio. Antigamente os esporões de peixes e ferrão do rabo da arraia eram usados como encosto dos bilros, bem como um arame grosso com uma das pontas polida e a outra envergada.
O cartão perfurado com piques, ou seja, o esquema da renda é preso sobre a almofada para ganhar a confecção. Trocando os bilros, isto é, entrelaçando os fios que estão presos nos bilros com uma habilidade fantástica, as artesãs produzem delicadas e belas rendas de entremeio e bico, estreitas e largas, flor de mamão macho, margarida, galinha com seus pintinhos e aplicações como: lacinhos, cestinhas, abacaxis, laranjas etc. Toalhinhas para bandeja, mesa, apoio de copo, golas e palas.
Os pontos recebem nomes especiais que variam de acordo com a região, como pano de crivo, trancinha, trocadilho, trançado, matachim, trança, pano de serêncio, pano fechado, pano baiano, pano inteiro, pano aberto.
Também é costume conservar os bilros da família, com os quais aprenderam a trabalhar”.
Rendeiras de Guarapari e Meaípe
Ana Maria dos Santos, conhecida como Dona Aninha, morava na Rua do Trabalho e começou a fazer renda antes dos sete anos. Filha da famosa rendeira Vitória Maria da Conceição – Vovó Vitorinha – brincando de rendeira, colocava os bilros ao lado da almofada de sua mãe e foi assim que se tornou artesã e escultora de rendas.
Olga Pinheiro de Jesus, mora no Caminho da Fonte e aprendeu esta arte com sua mãe, Geraldina da Conceição Pinheiro e seus bilros foram feitos pelo seu pai. Ultimamente seu trabalho se resume em fazer demonstrações. Dona Olga tem uma memória fantástica e muito do que conseguimos resgatar, da história, do artesanato e do folclore (letra e música), foi graças aos depoimentos desta senhora, que é a memória viva de Guarapari.
Dona Estela, esposa do Senhor José Lyra, há pouco falecida, criava rendas diferentes e era habilidosa bordadeira, todos se reuniam a sua volta para fazer rendas. Ensinou suas filhas gêmeas Paixão e Madalena.
Dona Alzira Vieira de Mattos Bresciani, nasceu em Meaípe em 1910 e faleceu em 1985. Aprendeu a fazer renda aos cinco anos de idade, com sua madrinha Belarmina Vieira de Mattos. Dona Zizi, como era conhecida, foi uma rendeira famosa, quem vinha comprar suas rendas era a esposa do Presidente Geisel.
Dona Carlinda, residente na rua São Pedro, em Muquiçaba.
Maria Brandão residente no Caminho da Fonte, também era famosa rendeira.
Dona Zota, fazia blusas e vestidos de renda.
As irmãs Maria e Laura, residentes no centro, em frente à agência dos Correios.
Dona Zulmira Fernandes, fazia renda desde criança.
Dona Maria Julieta, também falecida, morava em frente ao Forum (hoje Câmara de Vereadores) na rua Getúlio Vargas; podia ser vista pela janela tecendo rendas e sempre pronta para um papo animado com os que passavam. p193
E registra a luta para manter a tradição viva.
“ Em 1989, a Secretaria Municipal de Cultura criou a Casa da Rendeira, em Meaípe e foram contratadas 6 rendeiras, contrato que durou pouco tempo. Antes elas ficavam na Casa da Cultura de Guarapari, onde demonstravam esse importante artesanato. Abaixo os nomes destas artistas do bilro:
Antônia Almeida Leal
Arlete Santana Leal
Lúcia Helena Santana Leal
Maria Auxiliadora S. Serafim
Maria José Serafim Leal
Marilda Silva Souza”
A autora ainda homenageia as rendeiras com poesias:
“ Nossa homenagem a todas as rendeiras:
NOSSAS RENDEIRAS
Beatriz Bueno – 1991
“Antigas Senhoras,
Serenas, tranquilas,
Seus dedos são ágeis,
Iguais bailarinas
Na dançados Bilros
Cuja Sinfonia
São teias de Renda”
E seu livro traz ainda cantos entoados pelas rendeiras:
“Alguns cantos entoados pelas rendeiras, no ato de trançar, que foram colhidos pela folclorista Isabel Serrano:
Sou rendeira, faço renda,
Tendo renda na almofada;
Quando vejo o meu amor,
Não faço renda nem nada.
Aqui faço minha renda,
A renda dos corações;
Os alfinetes que espetam
São as nossas ingratidões.
Jacaré pau de espinho
Caranguejo anda na praia,
Também anda meu benzinho
Na renda da minha saia.
Esta almofada me mata,
Estes bilros me consomem;
Os alfinetes me espetam
A renda me tira a fome.
Tiro renda, boto renda,
Tiro renda da almofada;
Por causa do meu amor
Não faço renda nem nada.
Menina levanta a saia,
Não deixa a renda arrastar,
A renda custa dinheiro,
Dinheiro custa ganhar.”
Projeto Saber Fazer, nova tentativa de resgate
Em 2009 o Movimento Vida Nova Vila Velha (Movive) desenvolveu o projeto Nossa Terra Nossa Arte, em parceria com o Ministério do Turismo pesquisou e fez um diagnóstico a renda de bilro na comunidade de Meaípe.
Dentro da Pesquisa realizou o projeto Saber Fazer com a proposta de incentivar o ensino da renda a novas rendeiras. Na época, os pesquisadores encontraram ainda quinze rendeiras aptas a ensinar a arte de entrelaçar fios cruzando os bilros.
Aceitaram participar como instrutoras Dona Dilma Santana, de 62 anos, e Dona Vera Lúci Rocha Assunção, de 60 anos. Foram formadas duas turmas com cursos de duração de cinco meses e que funcionou num espaço cedido pela Colônia de pescadores, que se tornou a Casa das Rendeiras.
Foi mais um passo importante para não deixar a tradição, que a gerações sobrevive como mais um encanto desta comunidade morrer.
Fonte: Recorte Jornal a Gazeta, de 30 de maio de 2010 e também recorte de jornal provavelmente publicado pelo Movive, mas sem identificação, e relatório de ações de 2010 do Movive.

Jornal A Gazeta- 30 de maio de 2010.


Recortes emoldurados cedidos aos Grupo Barra de Renda. Este último não tem identificação, mas provavelmente foi publicado pelo Movive durante a execução do projeto Saber Fazer, em 2009.
Relatório de atividades do Movive 2010:


Fonte: Movive
Catálogo do artesanato capixaba – 2012
A renda de bilro do Espírito Santo é considerada uma das mais bem executadas no Brasil, comparando-se às de Santa Catarina. Apesar de atualmente ter desaparecido em alguns municípios, ainda são encontradas nos locais acima mencionados. Em Meaípe, município de Guarapari, hoje as rendeiras estão organizadas na casa das rendeiras, servindo de modelo às de outros municípios. Os modelos variados e antigos de bicos, entremeios e panos de bandeja convivem atualmente com a criação de objetos condizentes com a realidade do mundo contemporâneo. São bolsas, jogos americanos, arcos para prender os cabelos. Dessa forma, perpetua-se um dos mais tradicionais artesanatos do Espírito Santo.

Produto: Renda
Matéria-prima: Linha
Técnica: Trançado
Artesãs: Dilma Sant’ana, Jovelina Almeida Nascimento e Vera Lúcia Rocha


Artesã Vera Lúcia Rocha Assunção tecendo renda de bilro.

Artesã Dilma Sant’ana tecendo renda de bilro.
Parceria com a Barra do Jucu reacende a esperança
Segundo Dona Dilma Santana, o espaço onde as rendeiras se reuniam, a Casa da Rendeira foi fechada, e voltou a ser a sede da Colônia de Pescadores. As rendeiras tiveram, então, que retirar suas almofadas e demais materiais do local. Sem ter onde se encontrar, para comercializar o seu produto, e sem apoio público, as rendeiras ficaram desestimuladas e as poucas que restavam, passaram a rendar somente em casa.
Foi então que, em 13 de novembro de 2022, Regina Ruschi, coordenadora do grupo Barra de Renda, depois de muitos anos tentando encontrar uma rendeira antiga de Meaípe que se dispusesse a voltar a fazer renda e a repassar esse oficio encontrou D. Dilma Santana que prontamente aceitou o desafio. Dia 21 do mesmo mês D. Dilma já havia feito sua almofada, colocado o pique e os bilros e iniciado sua renda.


Um grande facilitador para o início desse resgate foi o fato de o Grupo Barra de Renda ter uma rendeira de Meaípe, a Ismélia Costa Belmont, que prontamente se dispôs a assumir o papel de mobilizadora e organizadora do grupo na comunidade. “Eu, por ir frequentemente à comunidade, sabia que lá se encontrava o último polo de confecção de renda no Espírito Santo, que eram reconhecidas por sua qualidade e beleza. Então com a disposição da D. Dilma e da Ismélia, tivemos a certeza que era o momento de apoiar e lutar para que a renda de bilro voltasse a ser referência em Meaípe. E deu certo!”, afirma Regina Ruschi coordenadora do Barra de Renda.
Veja reportagem da TV Guarapari de um intercambio entre a Barra do Jucu- https://www.youtube.com/watch?v=qcYzWLTf4TY&t=132s
Com o apoio e a animação da Ismélia, duas mestras da comunidade foram incentivadas a novamente a formar o grupo na comunidade. A tarefa de ensinar novamente coube as rendeiras Idraumira Bourguignon, a Dona Grauma de77 anos, e a Dilma Santana, de 76 anos, duas veteranas no assunto. Dai pra frente as rendeiras da Barra começaram a convidar as de Meaípe para participar de várias atividades conjuntas tais como feiras, reportagens e Orla Festival Cultura, Esportes e Sabores de Meaípe em setembro de 2023, dentre outras.

O apoio inicial veio do também da Barra do Jucu. O Grupo de Renda forneceu as primeiras almofadas, cavaletes e bilros para o grupo. Desde então, elas lutam pelo sonho de fortalecer o ofício de rendeira, e já conta com o reconhecimento da população
Vídeo da TV Guarapari registra o início do trabalho do Grupo – https://www.youtube.com/watch?v=U1EmPxNhyP4
Em 24 de fevereiro de 2014, elas formaram o Grupo Rendas de Meaípe, que conta com a participação de oito rendeiras e com oficinas regulares duas vezes por semana. A sede do grupo funciona na casa da própria Ismélia.
Em agosto de 2025 o grupo de rendeiras da localidade passaram a desenvolver suas atividades também na Casa do Artesanato de Meaípe.
Estas e outras histórias e informações sobre o Grupo Rendas de Meaípe podem ser conferidas no vídeo gravado pelo Grupo Barra de Renda para o Projeto Ponto de Memória das Rendeiras do ES, aprovado no Edital 06/2023 do Funcultura/SECULT ES, para registrar e salvaguardar as histórias maravilhosas dessa Cultura Popular Tradicional Capixaba.



Encontro de rendeiras da Barra do Jucu e Meaípe, em Meaípe, em de agosto festejando o Dia da Rendeira.
Dona Grauma conta que aprendeu a fazer renda aos 10 anos, com a mãe e sentada num chão de esteira. Assim como as rendeiras da Barra do Jucu, elas colocavam a renda numa caixinha e iam vender no comércio de Guarapari. De família de pescadores, os recursos da venda da renda confeccionadas por elas também contribuíam para as despesas da casa. Sua irmã Iralma e a tia Genezina, também faziam renda
Dona Dilma aprendeu a fazer renda aos 30anos, quando já estava casada e nunca mais parou. Ela conta que gosta tanto de fazer renda até quando está preparando o almoço, dá uma paradinha para rendar e antes, à noite, fazia continuava o trabalho à luz de lamparina.
Ela conta também que antes não havia cavaletes. A almofada era colocada na mesa e segura por pedras enroladas em panos para que a mesma não rolasse.
Os coquinhos para fazer os bilros vinham das matas ao redor da comunidade, de palmeiras chamadas emburi.


Reunião em 20 janeiro de 2024 com Regina, Ismélia, Dona Grauma e Dona Dilma.




Em março de 2024 uma nova caravana do Barra de Renda foi em Meaípe para intercambio com as rendeiras da comunidade.
Outro momento de intercâmbio entre rendeiras da Barra do Jucu e Guarapari foi na oi XXIII Feinartg – Feira de Artesanato de Guarapari, em 2025. O Barra de Renda esteve presente no evento com 13 rendeiras, no dia 06 de janeiro, para prestigiar o artesanato, a cultura popular capixaba e seus mestres. E também as paneleiras, as rendeiras, as artesãs das conchas, escamas, madeira, fios, o congo, e muito mais.


