Os pontos de memória nasceram da parceria entre o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e o Ministério da Cultura como forma de materializar o direito à memória que, na verdade, sequer temos a consciência de que esse é um direito de fato e não apenas uma expectativa de direito.
Com isso, em 2009 nasceu o Programa Pontos de Memória, resultado do somatório de esforços entre os Programas Mais Cultura, do Ministério da Cultura e do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania – PRONASCI, do Ministério da Justiça, com o objetivo de identificar, apoiar e fortalecer iniciativas de memória e museologia social pautadas na gestão participativa e no vínculo com a comunidade e seu território.
É a busca pelo reconhecimento e valorização da memória social dos diferentes grupos sociais do Brasil, direito este que tem de ser desenvolvido de forma democrática com foco na inclusão e na transformação social.
Com este objetivo aprovamos junto ao Fundo Estadual de Cultura através do edital 06/2023 Funcultura/Secult-ES o Projeto Ponto de Memória das Rendeiras de Bilro do Espírito Santo, para registrar em textos, fotos e vídeos, num site, todas as histórias passadas e presentes das rendeiras da Barra do Jucu, em Vila Velha e do Espirito Santo como um todo. Pretendemos assim, continuar construindo novas pontes para o futuro.
O resgate da memória das rendeiras de bilro, reconhecer o protagonismo destas mulheres em suas comunidades e no contexto sócio cultural em que estavam e estão inseridas é a base desse trabalho. É fortalecer este importante instrumento da cultura popular tradicional e torná-lo cada dia mais próximo e acessível aos capixabas.
Este é um site em construção, pois pretendemos a cada dia acrescentar novos registros e histórias deste ofício que já foi muito presente nas comunidades litorâneas do Espírito Santo, com um forte polo na Barra do Jucu. Já contribuímos efetivamente para o resgate das rendas de bilros da comunidade de Meaípe, em Guarapari que hoje é uma realidade e certamente apoiaremos outras comunidades para que cheguem a esse ponto.
Nossa determinação de trabalho e visão de futuro é que um dia as terras capixabas voltem a ser referência na confecção manual das rendas de bilro. Chegaremos lá!
Pioneiras
As mulheres que fizeram história da rendas de bilro na Barra do Jucu
A renda de bilro como manifestação da cultura popular chama muito a atenção do público. Onde quer que vamos, com nossas almofadas e bilros, com a renda que produzimos, ou os produtos onde aplicamos a renda, chamamos a atenção do público, com manifestações de reconhecimento e admiração.
São frutos de uma longa caminhada de resgate deste ofício, praticamente extinto na Barra do Jucu. Mas que traz em si a sabedoria de muitas mulheres desta comunidade que, no passado, fizeram da renda de bilro não apenas um passatempo e um instrumento de convivência, mas um meio de colaborar de somar nas economias domésticas e sustentar suas famílias.
Não conseguimos contar a história de todas essas rendeiras pioneiras da Barra do Jucu. Mas queremos, neste espaço, deixar pelo menos seus nomes registrados na história desta arte que hoje, por justiça, lutamos para que que tenham o devido reconhecimento.
Algumas das rendeiras que fizeram história na Barra do Jucu:
Dona Bernardina Vieira
Dona Bernardina foi a rendeira mais antiga que temos registro na Barra do Jucu. Iniciou uma grande família e foi a pioneira deste ofício na comunidade.
Ensinou muitas mulheres da comunidade a fazer renda, principalmente suas filhas.
Darcy Vieira dos Santos, Ester Vieira dos Santos, e Elza Vieira da Conceição. Todas faziam e comercializavam renda de bilro para colaborar no sustento da família.
Seu legado é reconhecido na comunidade e continua vivo através de netas e bisnetas. Entre elas estão Ruth Cléia Machado de Souza, neta que participa do Grupo Barra de Renda, e Mariza Vieira Gervásio, sua bisneta, que além de rendeira é professora do ofício para muitas das pessoas que se desafiam nesta arte.
Luzia Bianco Lyra
Dona Luzia Bianco Lyra foi uma grande rendeira da comunidade, junto com sua irmã Tilda Bianco.
Ela ensinou as próprias filhas e muitas mulheres da comunidade a arte da renda de bilro. Foi sua aluna Rosa Malta Leão, a Dona Rosinha, que ganhou da mestra sua primeira almofada de rendeira. Teve seis filhos e faleceu com mais de 90 anos.
É avó de uma das rendeiras do Grupo Barra de Renda, Joseny Lyra dos Reis Cruz. Joyce como gosta de ser chamada, conta que quando criança ficava deslumbrada com a avó e a mãe, Leonir Caldas Lyra, sentadas em esteiras, na frente da casa, fazendo renda. “Mas criança não podia mexer porque sujava a renda”, afirma.
A renda produzida por elas era vendida para costureiras do Centro de Vila Velha, e na viagem aproveitavam também para comprar a linha pra tecerem novas rendas.
“Vovó tinha uma rapidez, uma ligeireza muito grande. Ela separava e organizava os bilros, não errava nunca, tinha olho de vidro. E o mais impressionante é que ela não usava pique (gráfico com o desenho da renda), fazia tudo de cabeça”, afirma sua neta Joyce.
Dona Leonir Caldas Lyra, filha da rendeira Dona Luzia Bianco Lyra, e mãe de Joyce Lyra, além de rendeira, gostava de costurar, bordar e fazer crochê. Tinha muitos atributos, pois gostava muito das artes manuais, e principalmente de “arrumar noivas em dia de casamento”.
Dona Leonir faleceu em 2015 em um acidente.
Davina França de Paiva
Dona Davina também foi uma das mulheres que marcaram a história da renda na comunidade da Barra do Jucu. Ela não só fazia a renda, como ensinou as filhas Maria e Enedina a confeccionar rendas de alta qualidade e com grande reconhecimento.
Enedina foi uma exímia rendeira de bilros por toda vida. A outra filha de Dona Davina, Dona Maria de Paiva Rocha, também rendava muito. Mas como teve que administrar o Cartório da família, após a morte do seu pai João Cardoso de Paiva, deixou o trabalho de rendeira e suas almofadas de lado, sem nunca se esquecer dos ensinamentos da mãe.
Davina ensinou muitas rendeiras da Barra a fazer rendas e colocar seus piques nas almofadas, destacando-se entre elas, D. Julia, D. Mariones e D. Rosinha.
Grandes mestras no assunto, as mulheres da família faziam suas rendas na maior parte das vezes em casa na Barra do Jucu, pois eram muito tímidas para participar das rodas e grupos de rendeiras que se formavam para, além de fazer renda, também conversar e cantar cantigas de rodas. Em alguns momentos, se reuniam para fazer rendas com poucas amigas bem próximas na sombra da Igreja Nossa Senhora da Glória, situada em frente à sua casa.
Enedina França de Paiva
Foto: Zanete Dadalto
D. Enedina, como era conhecida, foi uma das mestras que colaborou com a formação do Grupo Barra de Renda, repassando o oficio através da oralidade, testando almofadas, bilros, pique e cavaletes pro grupo e ajudando a retomar a produção de renda manual a partir de 2014. Em 2020 ela foi reconhecida como Mestra da Cultura Capixaba – Prêmio Mestre Armojo – pelo Governo do Estado do Espirito Santo, através da SECULT. Faleceu em 2024 com 90 anos, mas fez e ensinou o ofício até seus últimos dias.
Suas rendas eram famosas e de uma qualidade incontestável!
Foto: Zanete Dadalto
Todo esse legado da família é herança agora da neta Maria da Glória Rocha. Glória Participa ativamente do Grupo Barra de Renda. Escolhe e desenvolve piques, faz bordados, costuras. Era companheira inseparável da tia, Dona Enedina. Era quem a acompanhava nos eventos para os quais era convidada, nas aulas que ministrava para as novas rendeiras, e quem levantava os bilros sempre que a tia iniciava um novo pique.
Na imagem acima podemos ver a Dona Enedina, com Dona Rosinha, nas primeiras oficinas do Grupo Barra de Renda.
Na imagem acima podemos ver uma homenagem do grupo Barra de Renda à Mestra D. Enedina – Praça Pedro Valadares – Barra do Jucu.
Dona Enedina, do alto de seus 90 anos, demonstrando para alunos da Escola Tuffy Nader como era feita a renda de bilro.
A rendeira Dona Maria de Paiva Rocha, com cunhada Julia Ferreira de Paiva, revendo os piques com os quais iniciaram na renda de bilro, quando eram jovens.
Rosa Leão Malta
Foto: Gabriela Zaupa
A alegria e o bom humor eram marcas registradas desta mestra.
Nascida e criada na Barra do jucu, em Vila Velha, era conhecida como Rosinha, filha de Luiza Bianco leão e de Reginaldo Dos Santos leão. Casou-se com Alarico Araujo Malta com quem teve oito filhos, muitos netos e bisnetos. Pertencia a duas das familias mais numerosas e respeitadas da Barra do Jucu, Leão e Malta, tendo sido amada e respeitada por todos da Comunidade. Não havia quem não gostasse dela!
Dona Rosinha aprendeu a fazer rendas com as rendeiras mais velhas da Barra, quando tinha apenas 11 anos. Era com essa idade que as meninas da Vila costumavam ingressar nesse oficio para ajudar na renda familiar. Em sua casa, a irmã Liceria Bianco Valadares, D. Mariquinha, era também uma exímia rendeira. A princípio, D. Rosinha e D. Mariquinha faziam rendas para ajudar à mãe. Depois de casadas, continuaram com o ofício para colaborar no sustento de suas próprias famílias.
Em 2015, contamos com Dona Rosa Leão Malta, mulher de garra e coragem invejável, ela desempenhou um papel fundamental em sua trajetória de vida quando aos 85 anos se dispôs a dar aulas de rendas de bilros para resgatar essa tradição.
Ela colocou os primeiros piques, testou os materiais já confeccionados sob a sua orientação e iniciou a primeira oficina de renda propriamente dita. Em 2016, diplomou a primeira turma formal de rendeiras de bilros da nova geração.
D. Rosinha ensinando como se faziam as almofadas de rendas de bilro.
Alunas da primeira turma de rendas de Bilro da Barra do Jucu – 2016.
Valorizava sua terra e sua cultura como ninguém e, em 2018 foi reconhecida como Mestra da Cultura Capixaba – Prêmio Mestre Armojo – pelo Governo do Estado do Espírito Santo, através da SECULT. Foi um momento de grande emoção para ela e toda a Comunidade que viu uma cidadã típica da Vila, ter seu esforço reconhecido por aquilo que a Barra do Jucu tem de mais notório: A valorização de sua cultura e de suas tradições.
Participação no Vitória Moda 2017. Divulgação da Cultura e venda de produtos.
Dona Rosinha com Dona Enedina nos primeiros anos do processo de retomada da cultura da renda de bilro na Barra do Jucu.
Homenagem do grupo Barra de Renda à Mestra D. Rosinha na Praça Pedro Valadares – Barra do Jucu.
Em outubro de 2019 D. Rosinha faleceu aos 89 anos e em novembro do mesmo ano, o grupo Barra de Renda fez uma homenagem a ela durante a maior feira de artesanato do Espírito Santo – ARTESANTO, contando com a presença de seus filhos e netos.
FAMILIA DE D. ROSINHA PRESENTE NA HOMENAGEM FEITA A ELA DURANTE A ARTESANTO 2019 – ANO DE SEU FALECIMENTO.
Em 03 de junho de 2022 foi publicada no Diário Oficial do Município de Vila Velha a Lei 6646 de proposição do vereador Joel Rangel que instituiu o dia 20 de julho – dia do nascimento de D. Rosinha – como DIA MUNICIPAL DA RENDA DE BILRO DE VILA VELHA.
Zenaide dos Santos Lyra
Dona Zenaide também foi uma das rendeiras pioneiras da Barra do Jucu. Veio de Caçaroca, em Cariacica, como muitas famílias que tinham o Rio Jucu, como elo ligação com a comunidade, pois aqui está a sua foz. Casou-se com o barrense nativo Manoel Santos Leão, conhecido como Noel Leão, e com ele construiu uma grande família com 10 filhos, sendo que três faleceram bem pequenos.
Quem conta sua história é a filha Laudiceia dos Santos Marvila, a Didi. “A maioria das famílias que moravam aqui eram muito pobres e faziam de tudo para sobreviver”. O pai era pescador e mãe também o acompanhava na pesca, mas também costurava numa máquina tocada à mão, buscava lenha nas matas próximas, e rendava. Tudo para colaborar no sustento da família.
A renda que Dona Zenaide fazia era vendida na feira de Aribiri, Vila Velha. Era o marido, Noel Leão, quem levava a renda para a feira, junto com o peixe salgado. “Mamãe não produzia muita renda, pois o trabalho era muito. Mas sempre que tinha tempo, ela estava na sua almofada, se juntava com as amigas rendeiras, pois todos eram amigas aqui. Nós éramos pequenos, mas a gente gostava de ficar ouvindo o barulhinho dos bilros trançando os fios”.
Orgulhosa do trabalho da mãe, Didi ainda guarda peças com renda feita pela mãe, com uma toalha de banho de tecido e um centro de mesa, memórias de um tempo em que a renda de bilro não era tão valorizada, mas era um elo de ligação entre as famílias da Barra do Jucu.
Registro do dia do casamento de Laudiceia, Dona Zenaide é a primeira à esquerda. O filho Joel Leão em pé nos fundos, a dama é Márcia Valadares e o pajem Roberto Valadares. Os noivos Didi e Joaquim, e os padrinhos Ondina e Valter Simões.
Peças com rendas feitas por Dona Zenaide e guardadas pela filha Laudiceia.
Entrevistas – Memórias das Rendas de Bilros Capixabas
Laudicéia, Bernadete e Iocléia
Memórias.
O legado do passado que se faz presente, que mantém viva a história e constrói pontes com o futuro! Importante para transmitir de geração em geração a cultura de um povo, seus modos de pensar e fazer, seus valores e tradições.
Este é o propósito do grupo Barra de Renda ao realizar o Projeto Ponto de Memória das Rendeiras de Bilro do Espírito Santo.
Queremos resgatar muito mais que a história de um ofício que, quase, se perdera no tempo. Mais que isso, nos propomos a reconhecer a contribuição de tantas mulheres fortes, que com mãos hábeis teciam rendas, transbordavam afetos e marcaram seu tempo com seus jeitos simples, alegres e modos de vida comunitários.
Neste vídeo vamos ouvir a história de três mulheres ligadas pelas memórias afetivas da renda de bilro.
Você vai conhecer Laudiceia Santos Marvila, a Didi, e Bernadete Vieira, ambas filhas de rendeiras tradicionais da Barra do Jucu e Iocleia Aureliano Guszansck, uma quilombola que veio para a Grande Vitória ainda criança, mas quer manter viva a história da avó rendeira e sua almofada, em um quilombo no Norte do Espírito Santo. Hoje ela se tornou mulher rendeira e contribui muito com o Barra de Renda.
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado durante um dia de sol, apresentando três mulheres que estão sendo entrevistadas em um local chamado República da Barra, localizado na Barra do Jucu, em Vila Velha, no estado do Espírito Santo. O local é bem agradável e tem a aparência de um quintal arborizado, com árvores que fazem sombra. Circulando no local, estão pessoas que interagem entre si e participam de uma feira de variedades, inclusive integrantes de uma banda de congo que estão se preparando para se apresentar].
Joecy Lyra dos Reis Cruz
Ela é neta e filha de rendeira, então rendeira ela é!
Vamos conferir o depoimento da rendeira Joecy Lyra dos Reis Cruz, que faz parte do grupo Barra de Renda.
Sua avó, Dona Luzia Bianco Lyra foi uma grande rendeira da comunidade, junto com sua irmã Tilda Bianco. Ela ensinou as próprias filhas e muitas mulheres da comunidade a arte da renda de bilro. Foi sua aluna Rosa Leão Malta, a Dona Rosinha, que ganhou da mestra a sua primeira almofada de rendeira. Teve seis filhos e faleceu com mais de 90 anos.
A mãe de Joyce, Dona Leonir Caldas Lyra, além de rendeira, gostava de costurar, bordar e fazer crochê. Tinha muitos atributos, pois gostava muito das artes manuais, e principalmente de “arrumar noivas em dia de casamento”.
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado em um ambiente fechado, dentro da residência da entrevistada, localizada na Barra do Jucu, em Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Joecy é uma mulher loira, branca e está sentada ao lado de uma almofada com bilros que está posicionada em cima de um cavalete. Ao final do vídeo, quando inicia a música, aparece as mãos de Joecy praticando a renda].
Marilena Soneghet
Ela é escritora, poetisa, pintora, música, atriz e muito mais.
E claro, uma pessoa assim se apaixona sempre por tudo que é bom, principalmente da cultura popular.
Esta é Marilena Vellozo Soneghet Bergmann, que adotou a Barra do Jucu como seu lar há muitas décadas.
Tudo que encanta e toca seu coração, em suas mãos se transforma em poesia, música e crônicas que enchem os ouvidos.
E não poderia ser diferente com a renda de bilro. A delicadeza do cruzamento de fios já a inspirou a escrever poesias, a cantar e a criar laços afetivos para sempre.
Ela não é rendeira de ofício, mas de alma. Cruza letras e palavras em belas composições. Vamos conferir nesta edição os seus laços afetivos com a renda de bilro e a comunidade da Barra do Jucu.
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado na residência da entrevistada Marilena, em dois ambientes, parte em ambiente fechado, com dezenas de objetos decorativos e parte em ambiente aberto, com demais objetos decorativos e plantas, na Barra do Jucu, em Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Marilena é uma mulher branca e de cabelos curtos. Quando inicia a música, Marilena é quem canta e toca o violão].
Kleber Galvêas e Anita Bonadiman
Aos sete anos de idade ele veio à Barra do Jucu, pela primeira vez, com a mãe para comprar renda de bilro.
Uma amiga da família havia falado para sua mãe das belas rendas produzidas na comunidade. E ele, tão criança ainda, ficou encantado com o lugar que tomou uma decisão muito importante para idade. – “Quando me casar vou vir morar aqui”, falou para o pai.
O rapaz cresceu, se tornou um pintor famoso, viajou pelo mundo. Mas quando se casou, em 1974, cumpriu a promessa e aqui veio morar com a esposa, aqui teve os filhos, aqui fixou residência pra sempre.
Estamos falando do pintor Kleber Galvêas, casado com a professora e rendeira Anita Bonadiman.
Ele recebeu a equipe do Projeto Ponto de Memória, realizado pelo Grupo Barra de Renda, para falar desta relação afetiva com a Barra do Jucu, com as rendeiras, os pescadores e os encantos naturais deste lugar. Confira!
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado na residência dos entrevistados Kleber e Anita, na Barra do Jucu, em Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Os dois estão sentados na varanda, em local amplo, com uma janela acima de uma bancada, com livros, quadros e objetos decorativos. Kleber é um homem branco, com barba e cabelos brancos. Anita é uma mulher branca de cabelos curtos, ambos com estatura média].
Rita Lacerda
A inclusão é um dos valores que move o Grupo Barra de Renda.
Em nosso meio acolhemos e valorizamos primeiro a pessoa, depois verificamos se, com suas diferenças, é necessário um tratamento especial, alguma medida que contribua para melhorar sua permanência entre nós.
E foi assim que recebemos uma rendeira pra lá de especial, uma baiana “arretada”, apaixonada por renda de bilro e que veio dar os primeiros passos nesta arte aqui na Barra do Jucu.
Esta é a Rita Lacerda, uma cadeirante que adora aventuras e que não mede esforços para aprender a rendar.
Ela sai do município da Serra, todo sábado, e vem para a Barra do Jucu realizar o seu sonho, incentivada pela amiga e também rendeira Ana Cristina Pôncio, moradora de Jardim Camburi, em Vitória.
Nesta edição, entrevistada pelas instrutoras Marisa Vieira Gervásio e Rosiane Biet, e com a participação da coordenadora Regina Ruschi, ela conta como foi seus primeiros contatos com o Grupo Barra de Renda, como foi acolhida pelo grupo.
E também como tem levado sua experiência para mulheres de Itamaraju, na Bahia, que enfrentam o luto pela perda parentes.
Rita seja sempre bem vinda à Barra do Jucu e ao Grupo Barra de Renda!
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado no Ateliêr do Grupo Barra de Renda, local com clores claras e bem iluminado, com a presença de Rita Lacerda, das instrutoras de renda de bilro Mariza Gervásio e Rosiane Biet, e também a coordenadora do grupo Regina Ruschi, em ambiente fechado, com dezenas de objetos decorativos. O Ateliêr fica localizado na Barra do Jucu, em Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Todas as mulheres estão sentadas. Marisa e Rosiane estão do lado esquerdo, Rita no centro, tecendo renda e Regina está do lado direito do vídeo, que aparece apenas uma vez.]
Dona Giza
Muita gente tem participado da tarefa de fazer com que o Espírito Santo volte a ser referência na confecção de renda de bilro. Direta ou indiretamente, são muitas mãos e corações que lutam para que o ofício de rendeira continue vivo em nossa história. E uma pessoa em especial tem feito muito por este sonho.
É dona Giza Guimarães Ruschi, de 93 anos e que há dez participa desta luta com muita determinação e garra. Moradora de Vitória, Dona Giza assumiu esta tarefa com muita dedicação, como tudo que fez e faz na vida. Mãe da coordenadora do Grupo Barra de Renda, Regina Maria Ruschi, e colaborando com a filha, ela deu os primeiros passos do ofício aos 84 anos. Costureira, bordadeira, crocheteira, ela desvendou os mistérios da renda de bilro com a ajuda das mestras Dona Rosinha e Dona Enedina. Mas também, com a filha, buscou ajudar a ensinar às demais aprendizes através dos conhecimentos extraídos de uma apostila digital que sua nora emprestou. Para que o projeto fosse a frente, ajudou voluntariamente a produzir as primeiras almofadas e bilros para o grupo.
Se dedicou tanto que se tornou uma rendeira “de mão cheia”, confeccionando “quilômetros de renda”, como diz sua filha Regina. Atualmente produz uma infinidade de toalhinhas bordadas que é o produto campeão de vendas do Barra de Renda. Confira a bela entrevista com esta mulher forte, de muita fibra, mas delicada como são as rendas e rendeiras do ES.
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado na residência de Dona Giza, em Vitória, no estado do Espírito Santo, ambiente fechado, com clores claras e bem iluminado, com móveis e dezenas de objetos decorativos. Conta com a presença de Marina Filetti, Maria Filetti, Ricardo Vereza e Paulinho e Regina Ruschi, filhos de Giza. Todas as pessoas estão sentadas. Ricardo e Maria estão no mesmo sofá; Marina está em pé filmando e entrevistando e; Regina está sentada em uma poltrona ao lado de sua mãe, Giza, com um cavalete com almofada e renda de bilro no meio].
Enedina
Confira nesta edição o depoimento desta mestra que nos inspirou a lutar pelo resgate da renda de bilro na Barra do Jucu e no Espírito Santo.
Enedina França de Paiva, a Dona Enedina, de 89 anos, foi uma das últimas rendeiras da Barra do Jucu, Vila Velha – ES.
Resistiu à investida das rendas industriais, nunca desistiu de sua almofada e confeccionou renda artesanalmente até nos seus últimos dias.
Colaborou desde 2015 das ações – oficinas, feiras, eventos estaduais, projetos e muito mais – para resgate da confecção de renda de bilro, realizadas pelo grupo Barra de Renda.
Tímida, de poucas palavras, mas de muita sabedoria, nos legou seu conhecimento com muito carinho e humildade.
Em 2020 recebeu do Governo do Estado o PRÊMIO “Mestre Armojo do Folclore Capixaba” e o reconhecimento como uma das mestras da cultura popular capixaba.
Perdemos nossa mestra em 17 de maio de 2024, mas herdamos sua fé na vida e na cultura de nosso povo.
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado na residência de Dona Enedina, na Barra do Jucu, no estado do Espírito Santo, na varanda, ambiente coberto, com cores claras e iluminado pela luz do dia. Enedina está sentada, na frente da almofada e cavalete, fazendo renda de bilro. Enedina é uma mulher parda, de cabelos curtos e grisalhos, usando óculos de grau].
Dorinha, Mariza, Tânia, Ruth e Otaviano
Quando abordamos a cultura popular de Vila Velha, e mais precisamente da Barra do Jucu, a família de Dona Doracy Vieira Gervásio, a Dona Dorinha, é a expoente mais credenciada a falar sobre o assunto.
Se tem congo, lá estão eles. E se tem poesia ou literatura também. No artesanato novamente encontramos os Vieira Gervásio. E não poderia ser diferente na renda de bilro, é claro.
A tradição de rendeira na família vem de longe. Começou com Dona Bernardina Vieira, a rendeira mais antiga que se tem notícia na Barra do Jucu, ofício que passou para as filhas, inclusive dona Darcy Vieira. Ambas são avó e mãe de Dona Dorinha.
Esta, por sua vez, como tinha muitas tarefas na família, não teve tempo de aprender a rendar. Mas quem trouxe no sangue esse oficio foi a filha, Marisa Vieira Gervásio.
Marisa não conheceu a bisavó, nem viu a avó fazer renda. Mas quando se viu diante de uma almofada e dos bilros, deixou fluir esta herança artística, e não só aprendeu a renda, como se tornou professora no assunto, e hoje é a instrutora do Barra do Barra de Renda, ensinando mulheres de todo o Estado e até de fora, a arte da renda artesanal.
Além de Marisa, outra filha de Dona Dorinha, Tania Maria Vieira e o marido Otaviano Marques Cavalcante, o Rabicó, fazem parte do Barra de Renda. Ela confeccionado as almofadas, e ele os bilros, instrumentos utilizados na confecção da renda.
Também da família e neta da pioneira Dona Bernardina Vieira, Ruth Cléia Machado Vieira viu a avó fazendo renda. Mas achou difícil aquele cruzamento de fios, e só recentemente encarou o desafio e é uma das integrantes do Barra de Renda.
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado na varanda da residência de Dona Dorinha. Local claro e iluminado com a luz do dia, com tons verdes, que fazem referência as cores da Banda de Congo Tambor Jacaranema, banda na qual Dorinha é a rainha. No local, todos estão sentados enquanto falam, exceto Mariza, que está de pé. Ao redor, existem vários objetos da casa de Dorinha. Encontra-se no local também, cavaletes com almofadas e rendas de bilro].
Idraumira, Eliane, Ismélia, Dilma e Rosali
Você sabia que a comunidade de Meaípe, em Guarapari, também já foi um polo de rendeiras de bilro?
A história é semelhante à da comunidade da Barra do Jucu, em Vila Velha.
Com o avanço das rendas industrializadas, o mercado da renda manual quase desapareceu e as rendeiras tiveram que “aposentar” suas almofadas e a arte quase foi esquecida.
Isso só não aconteceu de fato porque algumas “teimosas” insistiram e continuaram a fazer rendas em casa, que eram guardadas em suas caixinhas.
Mas como “a união faz a força”, as rendeiras de Meaípe também estão resgatando esta arte da cultura popular e reacendendo este ofício no coração e nas mãos de muitas mulheres da comunidade.
Há dois anos elas criaram o grupo Rendas de Meaípe que hoje conta com a participação de sete mulheres orientadas pelas mestras Idraumira Bourgnon, chamada carinhosamente de Dona Grauma, de 77 anos, e Dona Dilma Sant’Ana, de 76 anos.
Inicialmente apoiadas pelo Grupo Barra de Renda, da Barra do Jucu, elas criaram coragem e levaram o projeto em frente. Hoje já participam de feiras e eventos culturais, levando a renda de bilro de Meaípe para muitos lugares.
Nesta edição você vai conhecer as histórias de Meaípe e das mestras e alunas da comunidade, empenhadas em tornar a comunidade novamente conhecida por suas rendas e rendeiras.
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado na calçada em frente a sede do grupo de rendeiras de Meaípe. Local claro e iluminado com a luz do dia. A parede da sede tem cor de tom rosa, com janelas de vidro, com porta de grade de ferro. Um banner está pendurado identificando as rendeiras. Ao longe é possível ver casas pela rua. Postes, fiação e pequenas árvores nas calçadas. No local, as rendeiras estão sentadas enquanto falam, na frente de seus cavaletes, com almofadas e rendas de bilro. Da direita para a esquerda: Mestra Idraumira Bourgnon (Dona Grauma), Aluna Eliane Tavares de Oliveira Lamim, aluna Ismélia Costa Belmont, Mestra Dona Dilma Sant’Ana e aluna Rosali dos Santos Vaz.].
Maria e Júlia
A Barra do Jucu teve grandes rendeiras de bilro.
Num tempo em que as famílias enfrentavam grandes dificuldades financeiras, estas mulheres faziam deste oficio um meio de contribuir com o sustento das famílias.
Uma desta mulheres foi dona Davina França de Paiva. Ela não só fazia a renda, como ensinou as filhas Maria e Enedina a confeccionarem rendas de alta qualidade e com grande reconhecimento.
Grandes mestras no assunto, as mulheres da família faziam suas rendas em casa na Barra do Jucu, pois eram muito tímidas para participarem das rodas e grupos de rendeiras que se formavam para, além de fazer renda, também conversar e cantar cantigas de rodas.
Neste vídeo você vai conhecer sua filha, a Dona Maria de Paiva Rocha, hoje com 88 anos, também foi grande rendeira.
Vai ouvir as histórias de Dona Julia Ferreira de Paiva, nora de Dona Davina, que ainda é rendeira ativa.
E também da neta de Dona Davina, a Maria da Gloria Rocha.
Glória participa ativamente do Grupo Barra de Renda. Escolhe e desenvolve piques, faz bordados, costuras.
Era companheira inseparável da tia, Dona Enedina França de Paiva, mestra do Grupo Barra de Renda, que faleceu em 2024.
São histórias registradas pelo Projeto Ponto de Memória das Rendeiras de Bilro do ES, realizado pelo Grupo Barra de Renda, aprovado no Edital 06/2023 do Funcultura/SECULT ES, para registrar e salvaguardar as histórias maravilhosas dessa Cultura Popular Tradicional Capixaba!
#ParaTodosVerem [Este vídeo foi gravado na sala da residência de Maria, na Barra do Jucu. Local claro e iluminado com luz artificial. A parede da sede tem cores tons de verde claro, com janelas de vidros coloridos. No local, Maria, Júlia e Glória estão sentadas em sofá e cadeira enquanto falam, ao lado do sofá tem um cavalete, com almofada e renda de bilro.].
Dona Ione
Entrevista com Dona Ione para o Projeto Ponto de Memória das Rendeiras de Bilro do ES na sua residência na Barra do Jucu, no dia 14 de fevereiro de 2025, com a participação de Regina Maria Ruschi, Marina Filetti, Maria da Gloria Rocha e Pâmela Biet.
Ela tem 84 anos, é filha de pescadores, casou-se com um pescador, é mãe de pescadores e, é claro, rendeira de bilro.
Esta é Dona Mariones dos Santos Regis, mas que na Barra do Jucu é a Dona Ione.
É uma das muitas mestras que a Barra do Jucu, em Vila Velha (ES) gerou, guardiã de muitos saberes populares e principalmente da memória desta comunidade que é protagonista de muitos capítulos da história do Espírito Santo.
Dona Ione começou a fazer renda aos nove anos de idade com uma das pioneiras deste oficio por aqui, Dona Davina França de Paiva e suas filhas Maria e Enedina. Participou dos grupos de mulheres que se reuniam às tardes para rendar.
Mas como toda moça da época, casou-se cedo, aos 17 anos, e teve que cuidar dos novos compromissos de mulher casada: filhos e a casa. Por isso deixou a renda de lado, só voltando à almofada, bilros e piques de vez em quando.
Em entrevista à equipe do Projeto Ponto de Memória das Rendeiras de Bilro do Espírito Santo Dona Ione relembra o passado, os nomes de suas companheiras de renda, das pioneiras neste ofício na Barra do Jucu e região, e comprova a ligação entre a renda e pesca.
O Projeto Ponto de Memória das Rendeiras de Bilro do ES é mais uma ação do Grupo Barra de Renda aprovado no Edital 06/2023 do Funcultura/SECULT ES, para registrar e salvaguardar as histórias maravilhosas dessa Cultura Popular Tradicional Capixaba!
Confira a entrevista com mais uma das mestras desta arte popular da cultura capixaba, transcrita na íntegra:
Equipe do Projeto – Dona Ione fala pra nós o seu nome completo, sua idade?
Dona Ione – Meu nome é Mariones dos Santos Regis, mas a maioria me conhece como Ione.
Equipe do Projeto – Com quantos anos a senhora começou a fazer renda?
Dona Ione – Desde os nove para dez anos.
Equipe do Projeto – Naquela época criança não mexia na renda, e deixaram a senhora começar tão novinha?
Dona Ione – Não, a gente aprendia as coisas bem cedo. Não tinha esse negócio de ficar velho para aprender não.
Equipe do Projeto – E a senhora aprendeu com quem?
Dona Ione – Com a Dona Davina e as filhas dela Enedina e Maria.
Equipe do Projeto – E a senhora fez renda por quanto tempo?
Dona Ione – Fiz por muito tempo, até começar a me preparar para casar. Depois que casei, andei fazendo, mas só para o uso próprio.
Equipe do Projeto – E como a senhora vendia a sua renda?
Dona Ione – Aqui não tinha movimento nenhum, então a gente juntava duas, três pessoas, colocava numa caixinha, saia pra Vila Velha, pra Vitória, andava o dia inteirinho, batia de porta em porta oferecendo para ver se tinha alguém que queria comprar.
Equipe do Projeto – E era difícil vender?
Dona Ione – Era, era muito difícil. Quando a gente conseguia vender três, quatro pecinhas de cinco metros cada uma, era uma glória pra gente.
Equipe do Projeto – E vocês vendiam a renda a metro?
Dona Ione – Sim, era a metro. A gente fazia as pecinhas de cinco metros, dez metros, pra poder vender.
Equipe do Projeto – a senhora juntava a renda com mais quem para ir vender?
Dona Ione – Juntava com outras pessoas, outras colegas, colocava tudo numa caixinha, e a gente ia pra Vitória, pra Vila Velha e batia palma de porta em porta oferecendo nossa renda.
Equipe do Projeto – E para fazer a renda, a senhora se juntava com outras mulheres aqui da Barra?
Dona Ione – A gente juntava a turma, às vezes elas iam lá pra casa, outras vezes eu ia pra casa delas. A gente juntava a turma pra poder ficar mais alegre, a gente conversava muito. E às 4 horas (16 horas) a gente juntava as almofadas, guardava tudo e voltava pra casa.
Equipe do Projeto – A senhora se lembra dos nomes dessas amigas?
Dona Ione – Era eu, a Agripina, a Lenira, a Rosinha, que não era a Rosinha Leão não. Tinha uma porção de gente que se juntava para fazer renda.
Equipe do Projeto – E aí a senhora se casou com quem e teve muitos filhos?
Dona Ione – Meu marido se chamava Oiles Regis com quem eu tive 6 filhos, quatro homens e duas mulheres.
Equipe do Projeto – A renda que a senhora fazia contribuía com o sustento da família?
Dona Ione – A renda eu só fazia quando era solteira. Depois que casei eu só andei fazendo para minhas filhas ver. Depois de casada eu só cuidei dos filhos, da casa.
Equipe do Projeto – A senhora casou com quantos anos?
Dona Ione – Com 17.
Equipe do Projeto – Vocês faziam renda nas suas casas, na praça?
Dona Ione – Cada uma fazia na sua casa. A gente avisava: amanhã eu vou lá na sua casa fazer renda. E aí a gente colocava a esteira no quintal, do lado de fora que tudo era grama, debaixo da árvore, na sombra, ou dentro de casa e ali a gente fazia renda. Na casa da Dona Davina, a gente fazia na sala.
Equipe do Projeto – Naquela época, tinha alguma criança que começou a fazer renda com vocês?
Dona Ione – Não, não me lembro. Criança não. Essa turma foi dispersando e acabou. A única pessoa que continuou fazendo renda aqui, que nunca abandonou, foi a Didina (Dona Enedina). O resto todo mundo abandonou.
Equipe do Projeto – depois que a senhora se casou, algumas daquele grupo de amigas continuou a fazer renda?
Dona Ione – Algumas continuaram em casa, mas não fazia mais para vender, pra viver daquilo ali. Fazia mesmo por fazer, por distração. Agora Enedina nunca parou.
Equipe do Projeto – A senhora casou em que ano?
Dona Ione – Em 1958. Casei com 17 anos em janeiro. Em junho eu fiz 18.
Equipe do Projeto – Dona Ione, aqui eram todas ligadas a famílias de pescadores?
Dona Ione – É, aqui todo mundo era assim, não tinha ninguém diferente. Só depois alguns foram trabalhar na prefeitura, mas isso foi muito depois. Aqui era só mesmo pesca e só.
Equipe do Projeto – E as mulheres tinham alguma outra renda?
Dona Ione – Não. Aqui só se fazia renda ou era só pra criar filho e tomar conta de casa. E algumas lavavam roupa pra fora, pra Vila Velha, pra prefeitos, médicos. A minha tia mesmo lavou muita roupa para o Dr. José Luis Schinaider (Médico famoso em Vila Velha).
Equipe do Projeto – Mas vocês ajudavam a cuidar do pescado também?
Dona Ione – Não. Eles apanhavam a pesca e vendia. Levava pra vender no mercado de Vitória, em Vila Velha, ou vendia aqui. O que ficava em casa era só pra despesa. Aí se salgava e comia porque não tinha como guardar, porque naquele tempo não tinha congelador, geladeira. O único jeito de guardar por um tempo era salgando.
Equipe do Projeto – Salgava muita guaibira?
Dona Ione – Não. Salgava tudo, sarda, guaibira, enchova, xaréu, cação, salgava todo tipo de peixe, a sardinha que é a manjuba hoje. Quando dava muita sardinha de rede, cada um levava a sua parte, salgava, botava pra secar, depois quando aparecia o pessoal do interior, vendia aquilo tudo que sobrava. Eu comia muita sardinha assada na brasa, era muito gostoso.
Equipe do Projeto – Aqui, nessa época, os homens faziam as redes de pesca?
Dona Ione – Sim. Todos eles.
Equipe do Projeto – E as almofadas das rendas, vocês mesmas que faziam?
Dona Ione – Sim. Tudo era artesanal, tudo era fabricado pela gente. A gente fazia tudo, do começo ao fim. Não tinha nada nem onde comprar.
Equipe do Projeto – Os bilros, vocês faziam também?
Dona Ione – A gente fazia também.
Equipe do Projeto – E os coquinhos, de onde vinham?
Dona Ione – A gente catava nas matas ao redor daqui que tinha os coqueiros e a gente mesmo saia para buscar.
Equipe do Projeto – Era o buri (tipo de coqueiro)?
Dona Ione – Não, era o (coqueiro) pé de galinha. Aqui em Tapera (Itapuera) tinha um pé que a gente ia lá buscar.
Equipe do Projeto – Os maridos ajudavam a fazer os bilros?
Dona Ione – Sim. Quem fazia os cabinhos para os bilros eram eles. Meu tio então era especialista para fazer. Ele fazia da madeira de camará.
Equipe do Projeto – Qual era o nome dele?
Dona Ione – Era Tio Alcino Abreu, que era chamado de Sininho. Ele fazia tudo pra mim, lixava. A lixa nossa sabe qual que era? A pele do peroá. Não existia lixa, era com aquilo que se lixava.
Equipe do Projeto – Voltando às redes de pesca, os homens também faziam os fios para fazer as redes?
Dona Ione – Eles faziam as redes com fios de algodão. Eles urdiam o algodão e faziam o fio. Depois de um tempo, eles passaram a comprar o barbante. Aí eles só urdiam o fio para fazer tarrafa.
Equipe do Projeto – Era urdindo né?
Dona Ione – Era a palavra que a gente usava, não sei se é correta. Eu acho que o pessoal de antigamente, com toda a falta de ensino, eles falavam a palavra mais correta que hoje. Eles empregavam a palavra mais correta que hoje.
Equipe do Projeto – Eles não tinham ensino formal, mas da vida, da cultura popular.
Dona Ione – Eles falavam a palavra mais correta que hoje.
Equipe do Projeto – Eles eram mestres mesmo. Os pescadores, por exemplo, eles sabiam de tudo, eles entendiam do tempo, de pontos geográficos.
Dona Ione – Esse meu tio Sininho olhava assim (para o tempo) e dizia amanhã nós vamos pescar, nós vamos sair daqui as seis horas da manhã. Assim, quando era 11 horas, meia noite, ele olhava o tempo e dizia, é não vai dar não, o tempo vai mudar. Cinco horas da manhã o tempo tinha mudado.
Equipe do Projeto – Eles saiam de madrugada para botar o barco, não tinha luz não tinha nada.
Dona Ione – Era no facho, no lampião. O facho é um bambu que se enche de querosene e faz uma trouxa de pano velho, enfia nele e acende. A gente saia para pegar guruçá (espécie de carangueijo) na praia para pescar com aquele facho.
Equipe do Projeto – Aqui tem guruçá?
Dona Ione – Tem demais por aí e só sai de manhã e de noite. A gente pegava para ir pescar no mar.
Equipe do Projeto – Guruçá para pescar? Como eles faziam?
Dona Ione – Tirava a casca dele e o peitinho fazia a isca no anzol para pescar peixe de pedra, pargo, papa-terra, sargo de beiço, sargo de dente, garoupa. Peixe de pedra, esse que dá no mar, na pedra.
Equipe do Projeto – Eles sabiam onde dava cada peixe?
Dona Ione – Eles sabiam tudo. Lá de dentro do mar eles marcavam.
Equipe do Projeto – Do rio também conheciam todos os peixes? E o rio dava muito peixe?
Dona Ione – Demais. Era camarão da água doce, robalo, tainha, carapeba, pargo.
Morobá, cará e traíra eram peixes de brejo, de lagoa.
Equipe do Projeto – Seu Claudionor Coutinho (pai da Gloria, rendeira e membro da equipe do Projeto Ponto de Memória) também pescava?
Dona Ione – Seu Chichico não. Ele pegava era areia.
Equipe do Projeto – Seu avô sim (João Cardoso, proprietário do único cartório da Barra, marido de Dona Davina, pai de Maria e Enedina e avô da Gloria)?
Dona Ione – Seu João também não. Ele dava a rede de trasmalho para os outros pescarem para ele. Ele tinha cartório, era casamento, era certidão, tudo ele fazia. No ano que eu casei foi o ano que ele faleceu. Quem fez meu casamento foi Maria, sua filha, mãe de Gloria e irmã de Dona Enedina).
Equipe do Projeto – Então a senhora pegou a Maria debutando no cartório?
Dona Ione – Sim, acho que foi o primeiro casamento que ela fez, ela chorou muito quando fez meu casamento. Não tinha nem uns 15 dias que seu João tinha falecido.
Equipe do Projeto – Dona Ione, o pessoal tinha muita ligação com a mata de Jacarenema?
Dona Ione – Sim. Ali tirava madeira, do outro lado o pessoal tinha roça, tinha tudo ali. Tirava muita madeira para endireitar a casa, para fazer outras coisas.
Equipe do Projeto – as famílias daqui eram muito ligadas ao mar, ao rio, a Jacarenema?
Dona Ione – Só tinha aqui, só vivia aqui, todo mundo só vivia aqui, do mangue, do rio.
Equipe do Projeto – E a mata era bem grande?
Dona Ione – Era bem fechada. Eles iam ali para cortar vara para fazer cerca. Fazia cerca de varinha né. Cortava fechos e mais fechos de varinha (galhos) e não fazia falta, porque eles sabiam como cortar, não devastavam não.
Equipe do Projeto – E onde hoje é Terra Vermelha hoje, Jabaeté. Ali também era uma mata?
Dona Ione – Ali era outra coisa (Lugar). Ali era mata, era brejo.
Equipe do Projeto – As linhas que vocês faziam renda, vinha de onde?
Dona Ione – As linhas que a gente fazia renda a gente comprava na Vila Rubim (em Vitória). Era uns Carreteis grandes e os pequenos a gente usava para costurar. Tinha a linha 10 que era pra fazer uma renda mais grossa, e tinha os carreteis pequenininhos que era a linha mais fina que a gente usava para costurar.
Equipe do Projeto – Bem depois vocês ganhavam linha do pessoal da malharia (empresa de confecção de malha) instalada na Barra do Jucu?
Dona Ione – Quem ganhava muita linha da malharia era eu. Eles botavam muito fora e eu aproveitava. Fiz muita colcha de crochê com elas. Até hoje eu tenho linha aí.
Equipe do Projeto – Dona Ione, isso foi em que época?
Dona Ione – (Não se lembrou).
Equipe do Projeto – Os piques das rendas, de onde vinham?
Dona Ione – Os piques a gente apanhava, a gente via uma renda diferente, pegava e colocava em cima de um papelão, esticava direitinho e com o alfinete furava direitinho, e fazia o pique.
Equipe do Projeto – De onde vinha, quem fazia?
Dona Ione – Isso eu não sei. Uma fazia da outra. Por exemplo, uma tinha uma renda que eu não tinha e aí falava me dá que vou tirar, e tirava. Uma passava pra outra. Era assim.
Equipe do Projeto – A senhora tinha ideia de quem eram as rendeiras mais antigas?
Dona Ione – As mais antigas eram a Dona Davina, a Dona Bernardina, a Dona Emilinha, a Dona Geraldina que era chamada de Comadre Geraldina, Dona Menininha e Dona Luizinha que era mãe de Dona Rosinha Leão. Na casa de Dona Rosinha era ela, Dona Mariquinha e Dona Adilina. Aqui falou que era mulher, fazia renda!
Equipe do Projeto – Como vocês faziam renda, vocês se sentavam no chão, nas esteiras, e também pegavam uma cadeira?
Dona Ione – Sim, a gente se sentava no chão, nas esteiras, ou então a gente colocava pegava uma cadeira e colocava as almofadas e colocava outra cadeira de frente e colocava um encosto na almofada, um pedaço de madeira, para ela não rolar.
Equipe do Projeto – A senhora se lembra, das gerações mais novas, quem tenha passado o ensinamento para outras, para as filhas?
Dona Ione – Das gerações mais novas não. Teve um tempo em que só aqueles idosos que faziam. Iam morrendo e ia ficando poucos. Aí começaram a trabalhar fora, a sair, e ninguém se interessava. Só fazia mesmo aquele que sabia. Por exemplo, a filha de Dorinha, a Mariza (instrutura do Grupo Barra de renda) hoje faz renda. Na casa de Dorinha era a mãe e todas as irmãs dela que faziam renda. Depois Dorinha foi trabalhar fora, foi trabalhar na escola, e parou de fazer renda. Antes ela já não fazia porque lavava roupa pra fora. E assim foi parando. Eu mesma, minha almofada está guardada.
Equipe do Projeto – Depois que a senhora parou de fazer renda, teve uma época que a senhora andou demonstrando como se fazia a renda de bilro?
Dona Ione – Quando eu comecei a trabalhar na Prefeitura, a Albenes Meireles que era Secretária de Educação, botou nas escolas trabalhos manuais e eu dava aulas de crochê e eu comecei com a renda, mas não foi a frente não. Depois, passados uns tempos, o Alvarito Mendes foi secretário de Cultura, e me chamou para ir na Prainha, para fazer umas apresentações para as escolas. Eu ia pra lá e fazia renda e mostrava. Eu ficava fazendo a renda para as pessoas que iam lá ver.
Equipe do Projeto – Nessa época, a senhora ainda sabia de pessoas por aqui que faziam renda?
Dona Ione – Sim, só as idosas que tinham costume de fazer, a dona Bernardina, a dona Bernardina que morava do meu lado fazia, era a mãe de Dona Ester que também fazia. A Enedina fazia, a Dona Mariquinha fazia, a Rosinha fazia, a Julia fazia. Em Vila Velha tinha muita gente que fazia renda. A mãe de Dona Marina, esposa de Américo Bernardes (ex-prefeito de Vila Velha em dois mandatos: 1963–1966 e 1977–1982), também fazia renda.
Equipe do Projeto – Vocês ouviam falar das rendeiras de Guarapari?
Dona Ione – Não, não. Era mais aqui da Barra e de Vila Velha. Às vezes tinham algumas de Jaguaruçú que fazia, de Jabaeté, Ponta da Fruta. Em Jabaeté eu lembro da prima da minha avó a Mada, Madalena era o nome dela.
Equipe do Projeto – Qual era o nome da sua avó?
Dona Ione – Minha Avó era a Mariana da Vitória.
Equipe do Projeto – E a irmã da sua avó que era rendeira deveria ser Mada da Vitória né?
Dona Ione – Sim, sim.
Equipe do Projeto – E a senhora não tem nem ideia de onde veio a renda pra Barra do Jucu Dona Ione?
Dona Ione – Que eu me lembro não.
Equipe do Projeto – A senhora sabe de alguma história de rendeira vindo de Viana, Caçaroca, Araçatiba?
Dona Ione – Não, Não. Araçatiba era ligado com Jabaeté, Caçaroca com Camboapina, Jaguaruçu, Tanque. Itapuera fazia muita renda. Lá tinha a Dona Aninha. A mãe dela devia fazer, porque se ela aprendeu né!
Equipe do Projeto – Dona Ione, nessa época que vocês faziam renda morava todo mundo aqui nesse meiozinho da Barra?
Dona Ione – Não. Lá pra baixo tinha gente também. Aqui era dividido assim: Barra de Cima era até a igreja. Da igreja até onde é o Pertim (Padaria da Barra) era a Barra do Meio, e pra frente era a Barra de Baixo. A Barra de Baixo era do Mário Braga (bar) pra lá. Tinha a casa do pessoal do Bianco, do Seu Astério. A Barra Dois não tinha nada não. Era lagoa.
Registros da Entrevista com Dona Ione:
Saberes
Rendas de Bilro
Foto: Gabriela Zaupa.
O QUE É
As rendas de bilros são um tipo de renda artesanal feita à mão, caracterizada por seus delicados desenhos formados com fios entrelaçados.
O nome vem dos bilros, pequenos bastões de madeira esculpidos ou confeccionados com cabinhos de madeira feitos com sementes de palmeiras encaixadas em uma das extremidades. Os bilros são usados para enrolar e cruzar os fios, geralmente de algodão, linho ou seda. As rendas são feitas sobre almofadas que podem ser de diversas formas, sendo as cilíndricas, as mais usuais. Para dar a forma desejada à renda são usados moldes denominados piques feitos em papel cartão e presos à almofada para início do trabalho.
Essa técnica é uma das mais antigas formas de tecelagem artesanal do mundo e, no Brasil, chegou trazida pelos colonizadores portugueses, especialmente pelas mulheres do litoral. No Espírito Santo, por exemplo, ela se tornou parte importante da cultura popular tradicional, especialmente nas vilas de pescadores, como a Barra do Jucu, Meaípe, Conceição da Barra, Barra de Itapemirim, Anchieta, Marataízes e tantas outras.
COMO SÃO FEITAS
A renda de bilros é produzida sobre um molde de papel perfurado, chamado pique, que serve de guia para o desenho desejado.
Cada par de bilros controla um fio, e a rendeira, com movimentos ritmados e precisos de cruzar e torcer, vai formando os pontos e desenhos.
Alfinetes são colocados sobre o pique para sustentar o entrelaçamento e dar forma ao padrão.
O trabalho exige paciência, coordenação e memória visual, pois cada tipo de ponto — como o “ponto Costela de Sapo”, o “ponto Aranha” ou o “ponto Matachim” — tem sua própria sequência de movimentos.
O resultado é uma renda leve, delicada e de grande valor estético, usada em roupas, acessórios, toalhas, colchas, peças decorativas, obras de arte, etc.
Mais do que uma técnica, as rendas de bilros representam um patrimônio cultural e um modo de vida, transmitido de geração em geração, quase sempre entre mulheres.
RESUMO HISTÓRICO – ORIGEM DAS RENDAS DE BILROS DA BARRA DO JUCU
Origem Portuguesa das rendas de bilro brasileiras
Tendo as rendas de bilros brasileiras origens portuguesas, trazidas principalmente pelos açorianos, vale mencionar os registros obtidos em https://pt.wikipedia.org/wiki/Renda_de_bilros:
Segundo Pedro Cervantes de Carvalho Figueira, num pequeno ensaio escrito denominado A Indústria de Peniche, entre o fim do séc XIX e o início do XX, “Em Portugal, a palavra renda de bilros teria surgido por volta de 1560, no reinado de Dom Sebastião. Durante muito tempo, esta arte só foi praticada nos conventos e sua utilidade única era ornamentação de igrejas e das vestes eclesiásticas”…
Mais trechos desses registros utilizamos abaixo para situar a importância desse oficio nessa que é a região mais ocidental do Continente europeu. “A arte da renda de bilros teve especial expressão nas zonas piscatórias do litoral de Portugal, com maior relevo para Caminha, Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Azurara, Setúbal, Lagos, Olhão e Peniche, tendo existido ainda em Silves, Sines e Sesimbra. Também se encontra o fabrico de rendas de bilros em Nisa, no Alentejo e Farminhão, perto de Viseu”…
“Devido ao elevado nível em arte e produção atingido em Peniche, toda e qualquer renda de bilros portuguesa é conhecida, simplesmente, por renda de Peniche. Em meados do século XIX, existiam em Peniche quase mil rendeiras, segundo Pedro Cervantes de Carvalho Figueira. Eram oito as oficinas particulares onde crianças a partir dos quatro anos de idade se iniciavam na aventura desta arte”… …
“Em 1887, com a fundação da escola de Desenho Industrial Rainha D. Maria Pia (mais tarde Escola Industrial de Rendeiras Josefa de Óbidos), sob a direção de D. Maria Augusta Bordalo Pinheiro, que as rendas de Peniche atingiriam um grau de perfeição e arte difíceis de igualar”.
Desde 1887, estudiosos e entusiastas da cultura das rendas de bilros dessa península buscavam a criação de um Museu que pudesse comportar esses trabalhos a nível de outras artes como pintura, gravura e escultura que figuravam em grandes Museus Públicos abertos ao mundo. Mas, somente em 23 de julho de 2016, a Câmara Municipal de Peniche oficializou a criação do Museu da Renda de Bilro de Peniche que conta inclusive, em seu acervo permanente, com rendas e objetos do ofício originários do nordeste do Brasil. https://www.cm-peniche.pt/visitar/museu-da-renda-de-bilros-de-peniche
Foto: Museu da Renda de Bilro de Peniche.
Além de Peniche, em Portugal encontram-se ainda acervos desse ofício e dessa arte nos seguintes Museus:
Vila do Conde – Museu das Rendas de Bilros
Póvoa de Varzim – Museu Municipal de Etnografia e História
Setúbal – Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal
No Brasil
No Brasil, a renda de bilros trazida pelas mãos de mulheres portuguesas que vieram morar na colônia, era uma tarefa inclusa às atividades domésticas. Provavelmente, o fazer foi repassado a outras mulheres, escravizadas, que expandiram a confecção das rendas. As rendeiras brasileiras estão espalhadas em vários estados, em especial, no Nordeste, Rio de Janeiro e Santa Catarina. A renda é um patrimônio de nossa cultura e uma das questões latentes é o receio de que a tradição seja esquecida, considerando o pequeno número de novas rendeiras, seja pelo êxodo das cidades pequenas ou o interesse por outras atividades.
(Ramos, Luiza; Ramos, Arthur (1948). A renda de bilros e sua aculturação no Brasil. [S.l.]: Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia).
Em https://pt.wikipedia.org/wiki/Renda_de_bilros extraímos ainda as informações abaixo sobre a chegada das rendas de bilros ao Brasil:
No Brasil, a Renda de Bilros chegou com os portugueses; sendo uma tarefa das moças de fino trato das grandes e pequenas fazendas na época colonial brasileira. Durante o século XVI até meados do século XX; as meninas eram educadas para as tarefas domésticas tais como lavar, passar, cozinhar, bordar, costurar e fazer rendas de bilros.
Esteve presente em quase todos os estados brasileiros com maior incidência nas regiões litorâneas, perpetuando-se como forte tradição principalmente em Estados da Região Nordeste e em Santa Catarina.
O sul do País é apresentado como um dos primeiros centros ‘receptores’ da renda de bilro justificada pela imigração açoriana naquela região. Já no nordeste, além da origem portuguesa, existem outras versões, como a da influência holandesa, desde o século XVII. Atualmente, Séc XXI, há registros da presença de rendas de bilros nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil. No entanto, o Espírito Santo e o Rio de Janeiro despontam com projetos de resgate dessa cultura.
No Espírito Santo
No Espírito Santo a renda de bilro era confeccionada em praticamente toda a faixa litorânea e em alguns municípios do interior, como consta da pesquisa bibliográfica ( https://barraderenda.com/registros-historicos/ ) e principalmente de pesquisas de campo realizadas através da oralidade que iremos acrescentando paulatinamente a esse inventário.
Dentre esses registros e pesquisas de campo realizadas podemos destacar a ocorrência das rendas de bilros nas cidades de Vitória, Vila Velha, Guarapari, Conceição da Barra, São Mateus, Anchieta, Barra do Itapemirim, Linhares e Colatina dentre outras.
Dos recortes anexos ao site do Ponto de memória do Grupo Barra de Renda ( https://barraderenda.com/registros-historicos/ ) retiramos alguns relatos sobre Vitória, capital do Estado, por exemplo, transcritos aqui:
De Keyes, Julia Louisa:
KEYES, Julia Louisa. Nossa Vida no Brasil: imigração norte-americana no Espírito Santo 1867-1870. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.
“Não sabemos porque nos sentimos tão privilegiados, mas suponho que era porque tudo parecia tão diferente de uma cidade americana que não podíamos refrear nossa curiosidade. Se à época conhecêssemos os brasileiros melhor, teríamos conscientemente agradado ao invés de ofender, já que é sinal de boa educação entre eles examinar, em escrutínio, a aparência da redondeza e realizar cumprimentos agradáveis e lisonjeiros quando adequada às suas impressões, ou, de outro modo, se a opinião diferir.
Alguns foram atraídos ao verem mulheres fazerem renda, sobre almofadas, o que era feito com grande destreza, usando inúmeros alfinetes e bilros. Esses bordados e pontos eram realmente belos e as senhoras usavam-nos para adornar seus vestidos.
Suas fronhas são abertas em cada ponta, com um laço na borda da bainha. Garotinhas de todos os tamanhos têm conhecimento dessa arte e usam os alfinetes e bilros de forma tão ágil quanto suas mães, e as classes mais pobres fazem-na e a usam em grande quantidade.
Descobrimos o artesanato como uma característica do sexo frágil, e nos surpreendemos com a beleza de seu trabalho com a agulha, em casas completamente desprovidas de luxo e escassas em conforto”. p78-79
De Biard, Auguste François, 1798-1882 – Dois anos no Brasil (Tradução de MARIO SETTE
COMPANHIA EDITORA NACIONAL, São Paulo – Rio de Janeiro – Recife – Bahia – Pará – Porto Alegre – 1945:
“Todavia, sou obrigado a reconhecer que graças a uma dessas missivas obtivemos cavalos para nosso transporte e um negro para trazer os animais quando deles não mais precisássemos.
Era do nosso intento deixar as bagagens, em Vitória e ao atingirmos Santa Cruz mandar buscá-las cm canoas. E como não tivéssemos de partir logo fui dar uma volta pela cidade e seus arredores; foi, ali, que vi pela primeira vez um grupo de índios formando uma espécie de bairro. São bem numerosos êsses indígenas: a sua habitação sem que se possa chamar urna casa, não é, contudo, mais uma taba. :Eles já tinham certos hábitos civilizados. Entrei numa dessas habitações: em quase tôdas, mulheres faziam rendas de almofada e se via um periquito empoleirado num pau. Vi, também, alguns papagaios soltos”. P62
Da Viagem de D. Pedro ao Espírito Santo em 1860:
Viagem de Pedro II ao Espírito Santo / Rocha, Levy, 1916-2004 Arquivo Público do Estado do Espírito Santo – Secretaria da Cultura – 283p
“Os vinte e quatro remanescentes preferiram desprezar as culturas de milho, arroz, cana, e outros cereais; liquidar com as últimas cabeças de gado e com os dois lotes de burros que serviam para o intercâmbio das suas mercadorias; abandonar a dezena de casas que possuíam, algumas cobertas de telhas, por eles mesmos fabricadas, os paióis, monjolo, chiqueiro, e ficarem ali mesmo por Vitória, formando uma espécie de bairro da cidade. As suas mulheres já haviam aprendido a fazer
rendas de bilros e eles, sempre peritos na confecção de redes e tarrafas de tucum, estariam melhor como pescadores”. Pg. 102
No entanto, é no blog 14 – Tertúlia Capixaba – Livros e Autores do ES
https://www.tertuliacapixaba.com.br/paraler/fatos_e_coisas_do_es/bilros_que_fazem_arte numa coluna dedicada ao ilustre estoriador Guilherme Santos Neves que temos a melhor cronologia desse oficio em terras capixabas:
“Voltemos no tempo.
Diversos são os registros documentais que repicam do século XIX até nós focalizando as rendeiras do Espírito Santo.
Um deles, da autoria da norte-americana Júlia Louisa Keyes, data de 1867, e tem como localização a cidade de Vitória.
Júlia veio com a família para o Espírito Santo em busca de melhores condições de vida, depois do revés que os confederados do sul sofreram com a Guerra de Secessão de 1862 a 1865 nos Estados Unidos.
No diário sobre seus tempos de Brasil, registrou que, ao passar com a família por Vitória, a caminho do rio Doce, “alguns foram atraídos ao verem mulheres fazerem renda, sobre almofadas, o que era feito com grande destreza, usando inúmeros alfinetes e bilros. Esses bordados e pontos eram realmente belos e as senhoras usavam-nos para adornar seus vestidos. Suas fronhas são abertas em cada ponta, com um laço na borda da bainha. Garotinhas de todos os tamanhos têm conhecimento dessa arte e usam os alfinetes e bilros de forma tão ágil quanto suas mães, e as classes mais pobres fazem-na e a usam em grande quantidade. Descobrimos o artesanato como uma característica do sexo frágil, e nos surpreendemos com a beleza de seu trabalho com a agulha, em casas completamente desprovidas de luxo e escassas em conforto.” (2)
Bilros07
Seis anos antes da “descoberta” que encantou Júlia Keyes, o pintor francês François Biard registrou em seu livro Dois anos no Brasil que, ao passar por Vitória, entrou em várias choupanas onde moravam índios que o informante considerou bastante civilizados, tendo deparado, em quase todas, com mulheres que faziam rendas de bilro.
Por sua vez, o ilustre naturalista Augusto de Saint-Hilaire, quarenta anos antes de Biard, dá notícia, na obra em que trata da sua viagem ao Brasil, de que as mulheres do Espírito Santo (sempre elas) dedicavam-se à tecelagem do algodão, sendo que a maioria fazia rendas.”
Além desses registros, que remontam a tempos bem antigos da existência de rendas de bilros em terras capixabas temos em https://barraderenda.com/registros-historicos/ muitos outros datados de períodos mais próximos, principalmente dos séculos XX e XXI.
Dentre os registros mais próximos, destacamos os do município de Guarapari que existem em maior quantidade e qualidade. Meaípe, uma vila de pescadores do município de Guarapari, foi o último polo de rendeiras do Estado até o início do resgate pelo coletivo de rendeiras de bilros da Barra do Jucu, em 2015.
As rendeiras de Meaípe ainda buscaram se manter no ofício até o início desse século por meio de várias tentativas comunitárias, públicas e privadas de estímulo. Em 1989, a prefeitura de Guarapari criou a Casa da Rendeira numa tentativa de resgate dessa tradição. Em 2010 foi feita a última tentativa de resgate coordenada pelo MOVIVE – Movimento Vida Nova Vila Velha – em parceria com a mineradora SAMARCO e o Ministério do Turismo, mas essas iniciativas não foram a frente.
No entanto, desde o início da pesquisa sobre as rendeiras de bilros da Barra do Jucu em 2013 se buscava o resgate em Meaípe. Muitas rendeiras antigas foram contactadas, mas, foi somente em 2022 que a arquiteta e Coordenadora do Barra de Renda, Regina Maria Ruschi, descobriu uma rendeira – Dilma Santana – que se dispôs a voltar a fazer rendas e ajudar a buscar outras rendeiras para iniciar esse resgate. Nessa busca, juntou-se a D. Dilma a rendeira Idralmira Bourguignon e com o trabalho efetivo da rendeira de bilro do Grupo Barra de Renda, Ismelia Belmont – moradora de Meaípe – iniciou-se o caminho em busca da organização das novas oficinas de rendas de bilros de Meaípe.
Esse resgate desde então é uma realidade, tendo assim no site https://barraderenda.com/ registros específicos sobre Meaípe.
Na Barra do Jucu, o ofício das rendeiras de bilros, que estava paralisado por cerca de 45 anos voltou à cena local em 2013 a partir do trabalho de pesquisa realizado pela arquiteta Regina Maria Ruschi e implantado a partir de pelo recém criado Museu Vivo da Barra do Jucu. Em 2017 o grupo de rendeiras tornou-se independente denominando-se Grupo Barra de Renda e passando a dedicar-se exclusivamente a atividades relacionadas às rendas de bilro. Em 2025 esse coletivo, que conta com 60 rendeiras, criou a Associação das Rendeiras de Bilro do Espírito Santo – Grupo Barra de Renda.
O Barra de Renda através dos recursos do Funcultura/Governo do estado do Espírito Santo disponibilizados através do Edital SECULT 06/2023 vem aprofundando nessa pesquisa, registrando, mapeando a ocorrência das rendas de bilros em terras capixabas e salvaguardando no site https://barraderenda.com/ a memória dessa importante manifestação da Cultura Popular do Espírito Santo.
No entanto para que esses resgates se consolidem ao longo do Estado é necessário que novas oportunidades acelerem as pesquisas para ainda contar com relatos obtidos a partir da oralidade de filhas, netas, bisnetas, amigas e vizinhas de antigas rendeiras uma vez que os poucos registros materiais da ocorrência desse oficio no Estado (fotos, vídeos, reportagens) não se aprofundam no tema nem tampouco se estendem ao vasto território outrora ocupado por rendeiras de bilro no Espírito Santo.
BARRA DO JUCU
Linha do Tempo
Na Barra do Jucu, as rendas de bilro significaram uma importante fonte de renda familiar, e alcançaram seu período mais produtivo por volta dos anos 50. Tiveram seu declínio após este período, quando as rendas industriais substituíram as artesanais em função do custo e da quantidade produzida, chegando ao quase desaparecimento a partir dos anos 70. Em 2013, com a pesquisa realizada sobre essa cultura e na continuidade com a criação do Museu Vivo da Barra do Jucu, recomeça o interesse pelo resgate dessa Cultura popular tradicional outrora tão significativa para a localidade.
Períodos importantes
1900 a 1970 – Do que se tem notícia, foi o período áureo da cultura popular tradicional das rendeiras de bilro da Barra do Jucu.
Início dos anos 2000 – D. Enedina, que havia parado de fazer rendas por volta de 1970, volta a fazer renda para a família e para algumas peças da Igreja Nossa Senhora da Gloria
Por volta de 2005 – Bernadete Maria Marques Calazans encomenda a confecção de 50 bilros a um marceneiro da região e tenta resgatar o oficio junto com as mães das crianças matriculadas na ABECA (Associação Beneficente da Criança e do Adolescente da Barra do Jucu), sem, contudo, obter êxito
2013 a 2014 – A arquiteta Regina Maria Ruschi, moradora da comunidade, faz uma pesquisa sobre as rendas de bilros da Barra do Jucu tendo como principal fonte de informação as rendeiras Rosa Leão Malta, Enedina França de Paiva e Mariones dos Santos Regis
2015 – Criação do Museu Vivo da Barra do Jucu, entidade da qual participava Regina Ruschi e outros membros da comunidade, que teve como primeiro trabalho de resgate de tradições, as rendas de bilro;
2016 – Inicio efetivo das oficinas de rendas de bilros patrocinadas pelo Museu Vivo da Barra do Jucu para resgate da tradição, tendo como oficineira D. Rosinha – Rosa Leão Malta.
2017 – Gravação de vídeo para o Ponto de Memória do Museu Vivo da Barra do Jucu com 7 das antigas rendeiras da Barra do Jucu
2017 – O coletivo de rendeiras de bilros da Barra do Jucu torna-se independente e passa a chamar-se Grupo Barra de Renda para trabalhar especificamente as rendas de bilros;
03/06/2022 – Criação do Dia Municipal das Rendeiras de Bilro de Vila Velha através da publicação da Lei 6646 de 26 de maio de 2022 no Diário Oficial do Município de Vila Velha, de autoria do Vereador Joel Rangel
22/08/2025 – Formalização da Entidade Associação das Rendeiras de Bilro do Espirito Santo – Grupo Barra de Renda
2025 – Criação do Ponto de Memória do Grupo Barra de Renda
História
Na Barra do Jucu, há relatos orais de confecção de rendas de bilro desde o início do século passado. As rendas representavam o principal oficio das mulheres da localidade que com o fruto dele, ajudavam seus pais e maridos no sustento de suas famílias, sempre muito numerosas. No entanto, não há muitas provas materiais dessa fase pois a Barra do Jucu era uma comunidade de pessoas bem simples, de poucos recursos e não tão desenvolvida turisticamente a ponto de se ter fotos ou vídeos aqui deixados pelos seus visitantes. Nesse sentido, o presente trabalho assume importante papel uma vez que resgata as poucas imagens, escritos, rendas, objetos feitos com elas e principalmente as memórias ancestrais registradas por intermédio da oralidade.
Não se sabe ao certo quando a renda de bilros foi introduzida na Barra do Jucu e quem trouxe o oficio para a localidade. Imagina-se que tenha sido d. Bernardina Vieira Machado, nascida em 1887 e que desde os primórdios do século XX fazia rendas de bilro. Ela é a mais antiga rendeira que se tem notícia na localidade. No entanto, pela lacuna de 45 anos sem rendas de bilro na comunidade – que precedeu o início da pesquisa a respeito desse oficio em 2013 – não foi possível mapear gerações anteriores de rendeiras. Fato é que D. Bernardina foi uma grande rendeira da Barra do Jucu, ensinou o oficio a muitas rendeiras inclusive às suas filhas, netas, noras, amigas e muitas outras mulheres da comunidade. Criou 18 filhos fazendo rendas e foi uma das maiores produtoras de sua época. As filhas que não rendavam dedicavam-se mais às atividades da casa. Percebe-se através dos depoimentos que quanto maior a habilidade da rendeira, maior era o respeito que esta tinha no grupo. Poucas faziam rendas para si próprias assim, as maiores rendeiras eram as que faziam da renda parte do sustento de suas famílias. Por esse fato, na Barra do Jucu há poucas rendas das antigas rendeiras. Poucas ficavam para as famílias locais em virtude da necessidade de transformá-las logo em meio de sustento.
Bernardina Vieira Machado – rendeira de bilro da Barra do Jucu– Sec XX.
Segundo D. Enedina França de Paiva, a única rendeira que permaneceu fazendo renda até a o início do resgate das rendas na Vila, o período que mais se produziu renda de bilro na Barra do Jucu foi de 1930 a 1960. As rendas eram tecidas, por quase todas as mulheres da Vila e há relatos que alguns rapazes também faziam rendas para fortalecer a produção da família.
Enquanto os homens passavam longos períodos nas atividades ligadas a pesca com redes artesanais, e na função de pequenos agricultores rurais, as mulheres ocupavam o tempo livre tecendo fios em almofadas de bilro. Dentre as funções ligadas a pesca, realça-se a de redeiro de pesca, que reafirma a tradição portuguesa trazida para o Brasil evidenciada na máxima também originária desses colonizadores que preconiza que “Onde há Rede há Renda”!
No Rio de Janeiro, na Região dos Lagos, há relatos que “a renda de bilro foi a principal atividade exercida pelas mulheres de pescadores no século passado e que, além de ajudar no orçamento familiar, o trabalho reunia as mulheres em grupos em que não faltavam casos para contar. Sentadas em cadeiras embaixo da sombra de grandes árvores, teciam as rendas ao mesmo tempo em que conversavam” (http://mapadecultura.rj.gov.br/manchete/rendeiras-de-bilro#prettyPhoto ).
Tal citação vem ao encontro dos relatos das rendeiras da Barra do Jucu, que citavam a árvore ao lado da Igreja Nossa senhora da Gloria como ponto de encontro para se fazer rendas. As varandas das casas das rendeiras também eram pontos de encontro das mesmas e onde se passavam longas tardes tecendo rendas, conversando e colocando piques umas para as outras. Alí também novas rendeiras eram iniciadas no oficio. Nesses momentos de encontros, enquanto as mães faziam rendas as crianças brincavam e, com almofadinhas no colo, começavam a aprender os primeiros pontos desse oficio. Comentam que era comum se ouvir o barulhinho do batido dos bilros ao se passar nas calçadas ou janelas em frente às casas das rendeiras. E assim a tradição era passada entre amigas e de mães para filhos. Os costumes eram semelhantes ao longo de todo o litoral brasileiro o que torna notória a ancestralidade dessa Cultura Popular Tradicional e suas origens.
Quanto à comercialização, as rendas produzidas na Barra do Jucu eram vendidas em Vila Velha e Vitória ou a freguesas que vinham comprar ou encomendar rendas na Vila. Normalmente, quando os pais, maridos ou irmãos iam levar os peixes, feixes de lenha, produtos da agricultura familiar para praticar o escambo ou vender, levavam em envelopes ou caixinhas de sapatos, as rendas produzidas no vilarejo, sempre muito limpas e engomadas. Eram rendas valiosas e reconhecidas como de especial qualidade. Algumas dessas rendeiras, ávidas pela venda de suas rendas, passavam elas mesmas o dia andando pelo centro dessas cidades, batendo de porta em porta em busca da comercialização das mesmas.
O fruto dessas vendas era vez ou outra utilizado para compra de roupas ou algum enfeite para as rendeiras novinhas, solteiras e vaidosas (com 7-8 anos as meninas começavam a aprender a fazer rendas de bilro) mas, em boa parte das vezes, esses recursos eram administrados pelas rendeiras mães de famílias numerosas que comentam que “era com esse dinheiro que vestiam e calçavam as crianças”.
Com o advento da produção cada vez maior de rendas industriais e a desvalorização dos trabalhos manuais, as rendeiras da Barra do Jucu, por aproximadamente 45 anos, pararam de fazer rendas até o início dos trabalhos de resgate desse ofício, já no século XXI.
Em 2013 e 2014, a arquiteta Regina Maria Ruschi iniciou a pesquisa sobre essa Cultura Popular Tradicional na Barra do Jucu. Em 2015 participou da fundação do Museu Vivo da Barra do Jucu onde junto a outros membros da comunidade integrantes desse coletivo, iniciou o trabalho de resgate das tradições culturais locais, dedicando-se prioritariamente às rendas de bilros.
Nessa época as rendeiras ainda vivas na comunidade estavam na faixa dos 80 a 90 anos. Elas aprenderam com suas mães, tias, amigas, vizinhas. mas não conseguiram despertar o interesse de nenhuma de suas filhas pois a partir dos anos 70 a produção de rendas de bilros entrou em processo de difícil comercialização pela perda de mercado para as rendas industriais. Dentre essas buscou-se as que se dispusessem a ajudar neste trabalho de resgate.
A única que ainda fazia renda, Enedina França de Paiva, esplendorosa em seu oficio, por ser uma pessoa muito reservada, não se dispôs a dar aulas em uma oficina, mas ajudou no que pode transmitindo seus ensinamentos através da oralidade principalmente para Regina, a coordenadora desse trabalho.
Dentre as demais, Rosa Leão Malta, de 85 anos de idade, que já havia parado de fazer rendas há mais de 30 anos, se dispôs a voltar a fazer e ensinar na oficina criada pelo Museu vivo da Barra do Jucu. Assim, D. Rosinha com seus 85 anos de idade, se dispôs a contribuir com sua comunidade sendo a primeira instrutora de renda de Bilro das oficinas da Barra do Jucu.
Num modelo diferente de aprendizado e de atividade, em 2015 o Museu Vivo cria uma oficina de Rendas de Bilro no prédio da Prefeitura Municipal de Vila Velha onde funcionava o antigo posto de saúde da localidade, na Avenida Ana Penha Barcelos. Com o uso do espaço permitido pela Assembleia de Moradores da Barra do Jucu, que detinha esse direito há cerca de 6 anos, o Museu começa ali suas atividades, tendo a Renda de bilro como primeiro objeto de resgate efetivo.
Como instrutora, D. Rosinha – Rosa Leão Malta – sempre disposta a colaborar com o resgate, explica como eram os bilros, as almofadas, os encostos, os piques e orienta na confecção dos utensílios necessários e como coordenadora do projeto, Regina Maria Ruschi organiza as atividades do mesmo.
Rosa Leão Malta – Primeira Instrutora da oficina de rendas de Bilro da Barra do Jucu.
A comunidade participou efetivamente do início dos trabalhos ajudando a fazer os bilros, as almofadas, os piques e preparando o local. Foi ainda desenvolvido um protótipo de cavalete para suporte da almofada durante o feitio da renda. Participaram dessa e confecção Cezar Guedes, Regina Ruschi e o Luthier Fernando Secomandi. Após ajustes, esses cavaletes passaram a ser confeccionados e utilizados por todas as alunas da oficina. Antigamente as rendeiras apoiavam a almofada sobre uma cadeira ou trabalhavam sentadas no chão, em camas ou sofás, o que não dava uma condição muito ergonômica para o trabalho. Para o custeio dessas oficinas e dos materiais a serem utilizados, o grupo pertencente ao Coletivo Museu Vivo da Barra do Jucu, passou a fazer mais festas, bingos, rifas e buscar o apoio da comunidade e de voluntários.
Ainda nesse período, as rendeiras de bilros participaram de eventos como Vitória Moda, feira ArteSanto, do Projeto Brasil Original do SEBRAE Nacional, de feiras na barra do Jucu e na Prainha, de oficinas de formação do SEBRAE e de tantas outras atividades.
Oficina de Renda de Bilro no Museu Vivo da Barra do Jucu.
Rosinha dando aulas para a aluna Tulipa Cabral.
D. Rosinha dando aulas a Ita Flavia de Souza.
Assim, com recursos oriundos das festas, bingos, rifas e muita disposição da comunidade local, o coletivo do Museu Vivo desenvolveu este trabalho até 2017. Foi um enorme aprendizado desde a confecção das almofadas, dos bilros, dos piques e dos cavaletes, até que iniciasse a primeira turma de renda de bilro da Barra do Jucu. Esta turma, de dez alunas, teve aulas efetivamente, de abril a setembro de 2016, quando se deu sua formatura no Segundo Seminário do Museu Vivo da Barra do Jucu.
Segundo seminário do Museu Vivo da Barra do Jucu em 2016
D. Rosinha, a Coordenadora do Grupo Regina Maria Ruschi e as alunas Julia Ferreira de Paiva e Giza Guimarães Ruschi
Pamela com 8 anos, Oficina de rendas de Bilro 2016
A idade das alunas em 2016 variava de 8 a 85 anos de idade demonstrando assim que o saber pode interessar a todas as faixas etárias.
Alunas em aula no Segundo Seminário do Museu Vivo da Barra do jucu – setembro de 2016
Festa Praça Pedro Valadares – venda de artesanato de Rendas de Bilro – 2016
As idades das alunas variavam de 9 a 86 anos de idade e a turma era composta por mulheres da comunidade que se dispuseram a replicar os conhecimentos ali obtidos.
Em 2017, esse coletivo de rendeiras tornou-se independente, passou a dedicar-se exclusivamente às rendas de bilros denominando-se, Grupo Barra de Renda. Nessa época, novas alunas juntaram-se à antiga oficina e ensinando umas às outras, seguiram seu aprendizado. As alunas encontravam-se numa fase onde seus trabalhos começavam a ter “qualidade de renda”, mas, muito havia que se ensinar para que elas se tornassem verdadeiras rendeiras
Em 2019 depois de um longo período de instabilidade de saúde, D. Rosinha faleceu.
Nesse período de difícil saúde de D. Rosinha, as rendeiras que sabiam um pouco mais ensinavam às outras. Nessa época com uma apostila de aulas de rendas de bilros de uma rendeira carioca chamada Marina Marins a coordenadora do grupo Regina Ruschi e sua mãe Giza Ruschi foram aprendendo pontos novos e repassando como podiam para as novas alunas. A aluna Pâmella Biet (filha da rendeira Rosiane Biet) que a época tinha entre 9 e 10 anos, muito inteligente e prestativa estava sempre buscando ensinar às novas rendeiras. Foi assim que o grupo se manteve até que depois do falecimento de D. Rosinha, duas das novas rendeiras – Mariza Vieira Gervasio e Rosiane Biet, se destacaram no grupo pelo desenvolvimento da técnica e a habilidade para ensinar. A partir daí passaram a contribuir efetivamente com as atividades de repasse dos conhecimentos inerentes às técnicas do oficio. A coordenadora do grupo se dedicava desde então ao repasse da cultura através da oralidade.
Fato é que, a partir desse resgate, muitas netas e bisnetas dessas antigas rendeiras participam da oficina e se dedicam à perpetuação dessa cultura.
Oficina do grupo Barra de Renda – 2017 – funcionando na sala da Associação de Moradores da Barra do Jucu
Oficina de Rendas de Bilro 2019–2020 Grupo Barra de Renda funcionando na Escola Tuffy Nader
Oficina de Rendas de Bilro a partir de 2023 – Ateliê do Grupo Barra de Renda
Oficina do grupo Barra de Renda atendendo visitantes– 2025
Com a criação do Grupo Barra de Renda o coletivo de rendeiras de bilros da Barra do Jucu cresceu muito. Desde 2017 então, visando além do resgate das rendas de bilros, promover a sustentabilidade desse oficio o Grupo reforçou seu núcleo de produção e passou a participar ainda mais de ações de comercialização dos produtos. Além disso dedicou-se também a desenvolver projetos e submetê-los a editais que passaram a ser parte importante dos recursos para manutenção do Grupo.
Barra de Renda na ARTESANTO
Barra de Renda no evento “Os Passos de Anchieta”
Nesses projetos inclui sempre o desenvolvimento de oficinas nas escolas, praças e no próprio ateliê, visando divulgar, disseminar a cultura e aperfeiçoar as técnicas relacionadas ao oficio.
O Barra de renda tem participado ainda de vários projetos junto às comunidades acadêmicas. Nesse sentido, realizou inúmeros projetos com as escolas locais, com o Colégio Vasco Coutinho (na produção de moda), com o IFES Vitória (Projeto Mulheres Mil), com a FAESA e UVV (trabalhos de graduação e de pós graduação) e com a UFES (Projeto Joias da Barra de extensão do curso de Gemologia), dentre outros.
Barra de Renda no Projeto Joias da Barra com Extensão da Gemologia UFES e SEBRAE
Barra de Renda com oficinas abertas aos visitantes na Praça Pedro Valadares, na Barra do Jucu
Mostra do Oficio em frente ao ateliê do Grupo Barra de Renda
Participou em 2024 de intercâmbio com rendeiras do Ceará, através do CEART – CE e das professoras Elizabeth Nader e Aparecida Torrecillas (do curso de Publicidade e Propaganda da UVV).
Participa do projeto “Linha do Mar” que percorre o Brasil com guarda sois bordados (o do Barra de renda, com rendas e bordados) representantes de 27 estados litorâneos brasileiros e que em 2026 ira para uma exposição no El Grassi Museum, na cidade de Lepzig, Alemanha.
Em 2024/2025 participou da Mostra de arte contemporânea denominada Transitar o tempo do Museu Vale, com a obra “Onde há Rede há Renda” uma instalação que remonta à relação intrínseca entre esses dois ofícios e a transforma numa obra de arte carregada de afetividades, sonhos e realidades! Fica em mais essa ação o firme propósito de auxiliar no resgate do ofício dos redeiros de pesca, ainda mais renegado que o das suas parceiras rendeiras de bilro.
Outra vertente que o projeto se dedica é à expansão da cultura Popular Tradicional das Rendas de Bilro pelo Estado do Espírito Santo. Busca-se prioritariamente o repovoamento das comunidades litorâneas (outrora rendeiras) com esse oficio e paulatinamente o crescimento em direção a outros municípios capixabas.
Desde o início das pesquisas sobre as rendas de bilros na Barra do Jucu verificou-se que as mesmas eram comuns a todo o Estado, principalmente aos municípios litorâneos onde haviam comunidades pesqueiras. Esse fato, sempre gerou um desejo, a principio latente, de expansão desse trabalho de resgate para todo o Estado. De 2017 para cá, o Grupo Barra de Renda vem buscando reforçar as ações nesse sentido, pesquisando a história das rendas no Estado, tentando identificar rendeiras, parentes ou conhecidas delas, dando aulas pela internet através das redes sociais do grupo para expandir suas fronteiras, buscando os órgãos de cultura, de turismo ou de geração de rendas desses municípios, as entidades públicas de fomento a essas ações, etc… Para incentivar essas comunidades já esteve em Marataízes na festa da Cidade e por diversas vezes em Meaípe com enormes rodas de rendeiras. A ideia é incentivar, apoiar a criação desses grupos e na medida do possível fomentar pra que sejam dados os primeiros passos rumo a organização dos mesmos e ao início dos trabalhos de resgate.
Grupo Barra de Renda buscando o resgate das Rendas de Bilro de Meaípe
Meaípe já é uma realidade, uma prova de que essa estratégia de ação tende a dar bons resultados. As rendeiras antigas de lá, Dilma Santana e Idralmira Bourguignon abraçaram com “unhas e dentes’ essa idéia e com a participação da rendeira do Barra de Renda Ismélia Belmont, moradora de Meaípe, estão desenvolvendo um trabalho exemplar! As rendeiras de lá tem sua própria organização e desde fevereiro de 2024 desenvolvem suas atividades regularmente.
No município da Serra, duas rendeiras integrantes do Grupo Barra de Renda, a Rita Lacerda e a Cristina Carvalho tomaram a iniciativa de criar uma oficina de rendas de bilros por lá e nesse ano de 2025 já começaram a desenvolver o oficio no Município! E assim vai… a ideia é que cada um do Barra de Renda seja um disseminador dessa ideia e um potencial multiplicador dos seus princípios! Para 2026 a meta é de se caminhar com esse resgate rumo as comunidades quilombolas de Sapê do Norte, em São Mateus, e ao Município de Conceição da Barra onde haviam muitas rendeiras.
SIGNIFICADOS
A renda de bilros já foi a principal fonte de renda das mulheres barrenses. Com a renda de bilros, as mulheres adquiriam calçados e roupas para elas e suas famílias numerosas. Era a função econômica que tinham na época. Destacam-se também pela importância na socialização das mulheres que se encontravam para fazer rendas, trocar piques e conversar. As mulheres rendeiras da Vila eram super vaidosas pelo reconhecimento de seus trabalhos e isso elevava demais a auto estima delas e da vila como um todo que tinha orgulho de suas produções. Com a interrupção desse oficio por cerca de 45 anos, essas mulheres acabaram migrando para trabalhos como faxineiras, lavadeiras, ajudantes de cozinha… profissões essas menos qualificadas que as impactaram muito. O mesmo ocorreu com os pescadores e redeiros de pesca que eram mestres dos seus ofícios e se tornaram braçais como ajudantes de pedreiro, coveiros, jardineiros, garis, etc. Um abalo enorme para uma comunidade que tinha orgulho do seu lugar (pertencimento), dos seus ofícios, de seus familiares e de sua cultura.
Ocorre também que nessa comunidade de pescadores onde a principal fonte de renda vinha do trabalho masculino, as mulheres, mães de famílias enormes ficavam restritas à enorme quantidade de trabalhos domésticos (quase sempre desvalorizados pela sociedade) que ainda as impedia de trabalhar fora.
Eram assim, as rendas de bilro um trabalho adequado pois, nos momentos entre uma atividade doméstica e outra, corriam para as suas almofadas e produziam pra vender. Essa contribuição com a renda familiar dava uma certa autonomia a essas mulheres acompanhada de uma espécie de respeito.
Com o resgate desse oficio e de sua história na Vila, constatou-se a qualidade desses trabalhos, os saberes dessas mulheres e o quão elas haviam sido importantes na formação e sustento das famílias da Barra do Jucu. Há relatos de que na época que pararam de vender suas rendas, as famílias passaram a desvalorizar seus trabalhos e a pressionar para que elas parassem de fazer as rendas “que já não valiam nada” e passassem a se dedicar ainda mais aos afazeres domésticos. Mas, elas gostavam daquele trabalho, tinham seu orgulho de rendeira, tinham ali seus momentos de prosa e de alegria… Havia ainda uma espécie de hierarquia, um respeito da comunidade e dos visitantes determinada pela qualidade dos trabalhos de cada uma. Até isso ficou encoberto perante as novas gerações. Abandonaram assim seu ofício e poucas contaram para as novas gerações sobre o quão grandiosas haviam sido! Entristeceram-se, mas não perderam a altivez, a consciência de sua capacidade!
Esse tipo de relato é comum a praticamente todas as antigas comunidades rendeiras espalhadas pelo Brasil e certamente representa um forte fator de dificuldade desse resgate. Poucas acreditam que valerá a pena voltar a fazer renda e que não passarão por isso novamente.
Mas, verdade é que o oficio dessas mulheres colaborou para a formação da identidade cultural e social do bairro, formada por pessoas prendadas, alegres e produtivas que se encontravam regularmente para trabalhar e conversar enquanto cuidavam de suas crianças que brincavam juntas ou aprendiam ali os primeiros ensinamentos desse ofício.
Por esses e outros motivos, o resgate da renda de bilro na Barra do Jucu é motivo de orgulho para a comunidade. É resgate de um sentimento latente, que não havia morrido, estava ligado a uma rica ancestralidade que encontrou terreno fértil em meio às novas gerações. Resgatar essas histórias e planejar junto à comunidade um futuro promissor para esse ofício fez reforçar sentimentos bons de pertencimento, de auto estima, de empoderamento feminino, de crença na geração de renda, na atração turística, na valorização do território, etc.
Esse resgate também deu uma visibilidade incrível e “vida nova” a senhoras idosas da comunidade, uma vez que independente do seu grau de escolaridade receberam da Prefeitura Municipal e do Governo do Estado status de Mestras da Cultura Popular, dando a elas posição de destaque e estima! A comunidade barrense teve ainda mais certeza de que ela é especial e que o apego a sua cultura é a engrenagem que move tudo isso e a faz ser reconhecida como tal em todo o Estado!
DESCRIÇÃO – ETAPAS
A renda de bilros é realizada sobre uma almofada cilíndrica, feita com pano grosso (antigamente eram sacos de estopa oriundos de sobras das atividades portuárias) e recheada com folha de bananeira, cujas dimensões dependem da dimensão da peça a realizar. Sobre a almofada é pregada uma pequena tira de tecido, geralmente de algodão, para não sujar a renda a ser feita sobre ela. Em alguns lugares fora da Barra do Jucu, utilizam-se também almofadas redondas ou em forma de pranchas acolchoadas.
A almofada fica sobre um suporte, geralmente de madeira, que permite que os bilros fiquem à frente e à altura das mãos das rendeiras. Na Barra do Jucu as mulheres trabalhavam com a almofada apoiada em uma cadeira, ou no chão (as mais jovens) ou em sofás ou camas. Hoje, as alunas das oficinas trabalham com um cavalete de madeira, ajustável à altura das rendeiras, desenvolvido para esse fim.
Na almofada, é colocado um cartão perfurado, o pique, onde se encontra o desenho da renda, feito com pequenos furos.
Nos furos do desenho, a rendeira espeta alfinetes onde são penduradas as linhas presas aos bilros (sempre trabalhados aos pares) para inicio dos trabalhos. A medida que os fios são trançados, novos alfinetes são colocados e nós são dados ao redor dos mesmos. Quando o trabalho chega ao fim do pique, a renda é amarrada, retirada da almofada e erguida para ser recomeçada, no início do mesmo pique.
No entanto, desde o início do resgate das rendas na Barra do Jucu as rendeiras novas trabalham com dois piques iguais que se sucedem ao fim de cada um deles para não mais ser necessário “erguer a renda”.
Os fios são manejados por meio de pequenas peças geralmente de madeira torneada, de sementes ou de outros materiais, como o osso, os bilros ou birros. Na Barra do Jucu os bilros são confeccionados com algumas espécies de coquinhos encontrados outrora nas matas da região e seus cabinhos esculpidos em madeira, normalmente o camará. Sendo assim, uma das extremidades dos bilros tem a forma de pera ou esfera, que servem de peso e na outra extremidade, as linhas ficam enroladas, sendo aparadas por um relevo na madeira que impedem os fios de se desenrolar e soltar dos bilros.
No início do resgate, foram feitos também bilros de missangas de madeira e toquinhos cilíndricos encontrados no mercado da Vila Rubim, como forma de se continuar o oficio mesmo com a escassez da matéria prima original. Para se facilitar o trabalho e baratear o custo, os cabinhos dos bilros estão sendo feitos com palitos de churrasco de bambu esculpidos, com uma conta ou bolinha de massa encaixada na extremidade contrária à do coquinho, com a função de aparar as linhas.
Os bilros são manejados aos pares pela rendeira que imprime um movimento rotativo e alternado a cada um, orientando-se pelos piques.
O número de bilros utilizado varia conforme a complexidade do desenho.
Usa-se também o Encosto que é um espeto alto feito de material metálico perfurante que serve para descansar os bilros que estão aguardando seu manuseio na renda que se está fazendo.
PESSOAS ENVOLVIDAS
Até os anos 70, as pessoas envolvidas no oficio eram as avós, as mães, as filhas e alguns filhos, na confecção das rendas. Avós, Pais, filhos e irmãos, na confecção dos objetos do oficio utilizados pelas rendeiras e na sua comercialização.
Dentre as principais rendeiras do vilarejo que tinham nesse oficio uma fonte de renda podiam-se destacar D. Bernardina Vieira Machado, D. Davina França de Paiva, D. Maria de Paiva Rocha, D. Enedina França de Paiva, D. Ester Vieira dos Santos, D. Doracy Vieira Gervasio, D. Liceria Bianco Valadares (Mariquinha), D. Luzia Bianco Lyra, D. Maria da Penha Leão, D. Emilinha Barcelos, D. Menininha Coutinho, D. Izaura Carvalho, D. Anisia Abreu, D. Carmelita Calazans, D. Paulita, D. Rosa Leão Malta, D. Genedi Vieira, D. Mariones Regis dos Santos e D. Zuzu, dentre outras.
Roda de conversa das antigas rendeiras da Barra do Jucu em 2017
A partir de 2015, com o resgate das rendas de bilro na Barra do Jucu, figuraram como pessoas à frente desse saber Rosa Leão Malta Instrutora e Mestra; Enedina França de Paiva – Mestra; Regina Maria Ruschi – Pesquisadora e Coordenadora do coletivo de rendeiras de bilros da Barra do Jucu; Mariza Vieira Gervasio – e Rosiane Maria Biet – Instrutoras do Grupo.
Mestra Rosa Leão Malta – Foto Gabriela Zaupa
Mestra Enedina França de Paiva – Foto Zanete Dadalto
Regina Ruschi – Coordenadora do Grupo de Rendeiras de Bilros da Barra do Jucu
Foto Gabriela Zaupa
Mariza Vieira Gervasio – Instrutora do Grupo Barra de Renda
Foto Zanete Dadalto
Rosiane Biet – Instrutora do Grupo Barra de Renda
Foto Zanete Dadalto
Muitas outras pessoas rendeiras ou não participam de ações importantes para o grupo como coordenadoras do núcleo de produção, social mídia, assessoria de imprensa, produtoras de rendas, artesãs e artesãos que confeccionam os objetos do oficio e os demais produtos oriundos desse saber e fazer.
Rendeiras do Grupo Barra de Renda 2022 – Foto Zanete Dadalto
Grupo Barra de Renda – Foto Zanete Dadalto
Grupo Barra de Renda – Foto Debora Benaim 2025
OBJETOS DO OFICIO – MATERIAIS
Na Barra do Jucu, para a confecção das rendas de bilro são utilizados os seguintes objetos do oficio:
• almofadas cilíndricas, recheadas com folha de bananeira coberta com sacos de estopa ou pano de saco, fechadas com cordão grosso e agulha de pilombá e coberto exteriormente por um saco ou uma faixa de tecido mais fino, geralmente estampadinho e de algodão. Antigamente esses tecidos eram as sobras dos tecidos que as donas de casa usavam para confeccionar as roupas para a família. As dimensões das almofadas dependem da dimensão da peça a realizar, mas normalmente possuem cerca de 35 cm de diâmetro por 45 cm de altura.
Foto Rosiane Sueyd
Almofada de rendas de bilro com pique, bilros, renda, linhas, alfinetes e cavalete. Nesse caso a renda e os objetos do oficio são acessíveis a PCD visuais e cadeirantes
- Pique – É um cartão perfurado onde se encontra o desenho da renda decalcado, impresso ou como antigamente, copiado de outra rendeira. Para essa cópia colocava-se o antigo pique sobre um novo papelão e ia-se introduzindo um alfinete mais forte nas marcas antigas e criando-se um novo pique através das marcas resultantes. Algumas rendeiras ao ter acesso a uma renda diferente também a colocam sobre um papelão novo e com um alfinete forte iam perfurando a renda e imprimindo manualmente um novo pique. Há rendeiras que se especializam em reproduzir piques e comercializá-los e outras, em criar novos desenhos de rendas e piques. Com o advento da internet muitos piques estão disponíveis em meios eletrônicos podendo ser reproduzidos a partir daí. Na Barra do Jucu são reproduzidos piques antigos, mas também, criados novos piques visando a inovação de produtos.
Foto Rosiane Sueyd
Na ordem da esquerda pra direita: tipo de pique original usado até hoje na Europa, ao lado um pique usado até os anos 90 na Barra do Jucu e depois modelo de pique impresso usado a partir 2015 na Barra do Jucu.
Foto Gabriela Zaupa
Tipos de piques impressos usados a partir 2015 na Barra do Jucu
• Bilros – Os bilros são pêndulos torneados ou feitos com coquinhos e cabinhos de madeira que, pendurados às linhas, mantém as mesmas esticadas e facilitam o trançar dos fios. Na Barra do Jucu são confeccionados com algumas espécies de coquinhos encontrados outrora nas matas da região e seus cabinhos esculpidos em madeira, normalmente o camará. Sendo assim, uma das extremidades dos bilros tem a forma de pera ou esfera, que servem de peso e na outra extremidade, as linhas ficam enroladas, sendo amparadas por um relevo na madeira que impedem os fios de se desenrolar e soltar dos bilros. Inicialmente, no Museu Vivo da Barra do Jucu, foram feitos também bilros de missangas de madeira e toquinhos cilíndricos encontrados no mercado, como forma de se continuar o oficio mesmo com a escassez da matéria prima original. Com o tempo e a constante busca do grupo Barra de Renda pelos coquinhos outrora utilizados, integrantes do grupo e simpatizantes do projeto adquiriram o hábito de colher esses coquinhos e trazer para analisarmos se serve para o trabalho das rendeiras. Hoje são inúmeros os tipos de coquinhos utilizados no oficio para confecção dos bilros. Para se facilitar o trabalho e baratear o custo, os cabinhos dos bilros estão sendo feitos com palitos de churrasco de bambu esculpidos usando-se em uma das extremidades uma conta de madeira ou bolinha de massa para amparar as linhas.
Painel com modelos de bilros e encosto, de rendas e letra de poesia da Escritora Marilena Sonegheti – acervo Grupo barra de Renda
Foto Gabriela Zaupa
Sementes de palmeiras como Buri, Emburi, Gariroba, Areca, Acaí e outras utilizadas para fazer os bilros para as almofadas e para os produtos artesanais do Grupo Barra de Renda
- Encosto – é um espeto medindo de 10 a 20 cm feito de material metálico perfurante com uma missanga ao fim, que serve para organizar os bilros que estão aguardando seu manuseio na renda que está sendo feita;
- Linhas – Antigamente usavam a linha Singer – linha 30, 40 e 50 – normalmente muito fina e uma mais grossa, também de algodão, chamada Manchete. Atualmente o Grupo Barra de Renda trabalha com linha Clea, Clara, Corrente, Anne (nas oficinas de aprendizado) e Esterlina nas espessuras 5, 8, 10 e 20 (para os trabalhos profissionais), de todas as cores ou matizadas;
- Alfinetes de costura metálicos com ou sem cabecinhas coloridas. No Nordeste é comum usar espinho de mandacaru para a confecção das rendas;
- Cavaletes – suporte ergonômico desenvolvido para apoiar a almofada de rendas de bilro durante a confecção das rendas. Feito em madeira por marceneiro e dobrável para facilitar o transporte e ajustável para se adequar ao tamanho da rendeira. Antigamente, como não tinham cavalete as rendeiras apoiavam suas almofadas em cadeiras colocadas a frente das suas, em gamelas colocadas sobre uma mesa, na cama, no colo sentando-se no chão puro, em gramados ou sobre esteiras.
PRODUTOS E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
Na barra do Jucu, os principais produtos resultantes das rendas de bilro eram as rendas vendidas a metro, os bicos, entremeios, palinhas de camisola, aplicações para lençóis, toalhas e enxovais de noivas e de bebês.
De 2015 para cá essa produção diversificou-se bastante. Assim, além das rendas acima o grupo de rendeiras da barra do Jucu produz também artigos de cama, mesa, banho, roupas, acessórios, biojoias, objetos de decoração, bonecas e souvenirs variados dentre outros.
EXPRESSÕES ORAIS
As rendas de bilro eram feitas em meio a muita conversa, sendo que algumas cantarolavam marchinhas de carnaval e a música Mulher Rendeira.
De 2015 para cá, com o trabalho de resgate das rendas de bilros na Barra do Jucu várias músicas vêm sendo criadas por compositores e cantores simpatizantes do grupo tais como Marilena Sonegheti, Jura Fernandes e José Antonio Monteiro. Assim, essas novas músicas somaram-se às anteriores e vem sendo cantadas também em encontros de rendeiras, oficinas, festas, etc…
Algumas palavras não muito usuais são comuns ao vocabulário das rendeiras tais como;
- agulha de pilombá – agulha curva e grossa própria para costurar a boca do saco de estopa com o qual era feita a almofada;
- Cochar – ato de torcer as linhas presas aos bilros;
- Matachim, Aranha, Costela de Sapo, pano aberto e pano fechado – Nomes de alguns pontos e tipos de trançados feitos nas rendas de bilros
RECOMENDAÇÕES
Para que essa cultura e esse oficio se perpetue na Barra do Jucu, será necessário primeiramente que a comunidade seja cada vez mais envolvida com o saber e mantenha oficinas regulares de ensinamento. Para tanto, deve-se garantir um espaço público maior e adequado para que as oficinas sejam realizadas e a manifestação possa ocorrer de forma regular. Deve-se buscar unir ao trabalho voluntário atualmente desenvolvido, incentivos públicos e privados para manutenção e ampliação de suas atividades. A comunidade da Barra do Jucu rica e respeitada pelas suas manifestações culturais necessita urgentemente de um espaço coberto e adequado para que as diversas
Como a comunidade em geral não possui um nível de renda elevado, considera-se fundamental que essas oficinas sejam garantidas de forma gratuita. Necessário ainda se faz que se criem núcleos produtivos de rendas e que se faça intercâmbios com rendeiras de outros Estados ou Países para que se acredite na força desse artesanato e no potencial turístico e econômico do seu produto.
Fontes Pesquisadas
Ao longo do inventário, pesquisou-se vários documentos sendo eles livros, papéis antigos, imagens, fotografias, vídeos, textos, jornais, revistas, sítios na internet e principalmente, relatos orais. Junto às pessoas do território, pesquisou-se músicas, objetos, desenhos, relatos e outros materiais sobre os bens culturais.
Livro História da Renda de Bilros de Peniche – Mariano Calado, 2003 – Gráfica Torriana – Portugal
Mensagem de D. Sultane Nader Valladares – Encontro da paróquia Nossa Senhora da Glória, final dos anos 70
(Ramos, Luiza; Ramos, Arthur (1948). A renda de bilros e sua aculturação no Brasil. [S.l.]: Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia).
https://barraderenda.com/registros-historicos/
Biard, Auguste François, 1798-1882 – Dois anos no Brasil (Tradução de MARIO SETTE
COMPANHIA EDITORA NACIONAL, São Paulo – Rio de Janeiro – Recife – Bahia – Pará – Porto Alegre – 1945:
blog 14 – Tertúlia Capixaba – Livros e Autores do ES
https://www.tertuliacapixaba.com.br/paraler/fatos_e_coisas_do_es/bilros_que_fazem_arte
Viagem de Pedro II ao Espírito Santo / Rocha, Levy, 1916-2004 Arquivo Público do Estado do Espírito Santo – Secretaria da Cultura – 283p
Mensagem de D. Sultane Nader Valladares – Encontro da paróquia Nossa Senhora da Glória, final dos anos 70
NOTA: Esse texto foi originalmente produzido pela arquiteta Regina Maria Ruschi para o Museu vivo da Bara do Jucu em 2017 e revisado e atualizado por ela mesma em 2025 para o Ponto de Memória do Grupo Barra de Renda.





